As férias de julho vieram a calhar. Animada, com sorrisão no rosto, Luisa, 7, respirou fundo e foi. Já era hora de tirar as rodinhas de sua bicicleta rosa, grande o suficiente para fazer com que apenas as pontas dos pés tocassem o chão. A decisão foi dela. O pedido também. A mãe, a agente penitenciária Neila Grabowski, aproveitou os dias de folga na semana para enfrentar o frio do rigoroso inverno que cobriu União da Vitória neste ano, e o desafio pela independência de sua caçula. Era só uma questão de tempo. Afinal, Luisa já vinha andando com as rodinhas erguidas e desde os três anos, quando começou a andar de bike, esperava pelo momento. Estavam ali apenas para dar à menina, aluna do segundo ano do Fundamental, a sensação de segurança. Luiza já sabia pedalar. E sabia que a partir da primeira pedalada sem apoio, daria um passo a mais.
“A rodinha está ali, mas sem necessidade. A Luiza está preparada para andar sem a rodinha”, afirma Neila, confiante e experiente no assunto. Mãe de três filhos – Luisa é a mais nova – sabe que quando eles decidem pelo fim das rodinhas, estão preparados para ir além. “Tenho a bicicleta como um passo para a independência de cada criança. Desde o primeiro, vejo essa passagem a partir da bicicleta. Com os três foi assim. Uma criança andando sozinha, ao lado dos pais, dos irmãos, se sente do mesmo nível. Quando esse degrau é conquistado, é um desafio que puxa outros. A criança que conquistou isso, se prepara para vencer o próximo”, avalia.
Parece simples, mas é quase algo da natureza humana – e da natureza da natureza. Basta pensar um pouco no que é a Terra ou, qualquer planeta. Pelo menos no Sistema Solar, todos são redondos, ou tem forma arredondada. E a roda da “magrela”, que formato tem? Desde a invenção dela, há cerca de seis mil anos, o mundo não é mais o mesmo. Nem o ser humano. Não fosse o uso da roda em incontáveis equipamentos, máquinas e engrenagens, como se conquistaria a Lua, por exemplo? Por lá, o pequeno passo do homem que agigantou toda a humanidade há 50 anos, se deve, em muito, à roda: ela esteve lá, em uma das maiores sagas do homem, quietinha no foguete, seja na câmara de combustão, no módulo de controle ou na coifa.
“A roda foi uma das principais invenções. A principal evolução e até ao uso do equipamento, se não fosse a roda, não existiria tanta evolução, inclusive na comunicação”, comenta a química e física, Andressa Caroline Faccioni. “Neste momento, um número incontável de rodas movimenta-se em nosso planeta, visto que desde os antigos guindastes egípcios até as hidrelétricas atuais tem como base a roda”, completa o matemático, Helio Marcel Hoffmann.
“Começamos com um triciclo, com uma bicicleta com rodinha e com o passar do tempo, aumentamos o tamanho da bicicleta e nossa coragem”
Na Terra, com a gravidade, a roda gira no chão, como música, orquestrada por quem a sabe “tocar” ou está perto disso, como Luísa. Na bicicleta, que embora tenha sido rabiscada por Da Vinci só ganhou formato depois, ainda no século 19, é a forma humana que impulsiona a roda, que dá a ela vida, o sentido de ser o que é. E é a mesma força que a interrompe. “Assim como a roda só para se tiver uma força contrária, os planetas não param porque não tem essa força sobre eles. Por isso, eles continuam girando”, compara Andressa. Composta especialmente por aço, a roda é resistente, forte o bastante para suportar toda a estrutura da bike e do corpo que vai usá-la. “Para que ela funcione bem, uma série de fatores são essenciais. Por exemplo, todas as extremidades que ficam dentro da roda, tem que ser redondas, perfeitamente redondas. Além disso, todo o eixo precisa ter um encaixe perfeito”.
José Antônio Campos de Lara não é perito em bicicleta. Nem em rodas. No entanto, na sua simplicidade, encontrou na bicicleta o tratamento ideal para seu filho, Enzo de Lara, um menino de oito anos que por conta de uma partícula a mais nos cromossomos, tem pouquíssima locomoção. “Zé” criou, sozinho, mas com competência mecânica, um triciclo. Mas não é um simples “tri”: trata-se do único meio de locomoção do filho – e que tem até cinto de segurança. “Já adaptei um andador e mais recentemente, uma bicicleta. Ela é um triciclo, com uma medida menor, com pedais mais reduzidos para ele fazer a força e para ele prender os pés, porque usa a tala corretiva. O banco é diferente, coloquei cinto pra ele”, conta, orgulhoso.
Mas, ainda eram precisos alguns ajustes. Por conta de suas limitações, Enzo não tinha força para fazer a pedalada toda. O pai ajudou de novo, com persistência, por dois dias. “Ele fazia o movimento pela metade. Então, eu amarrei um barbante no pedal e puxava para ele terminar a pedalada. Ele viu que o giro da perna fazia a bicicleta funcionar e foi embora”, conta. O menino, que não fala, sabe pedir a seu modo, para dar uma volta de bicicleta. Segundo o pai, que tem o celular lotado de fotos e vídeos de todos esses momentos, o pedido é diário, faça chuva ou sol. Enzo, que em casa apenas engatinha com dificuldade, pedala com liberdade – e sozinho. “Ele que controla, vai para onde quer. É uma escola que roda, que ensina bastante”.
Pedalando, o grupo de ciclistas, ‘Tô Passando’, experimentou exatamente o mesmo sentimento que Enzo descobriu ao pedalar. “Liberdade. Uma sensação de ser quem quero ser, de fazer o que quero. Só o pedal me proporcionou isso até agora”, diz, como porta-voz do um time de nove integrantes, Cristiane Jankowski. O grupo, de nome bem curioso, nasceu tímido, fruto da ideia de Cris e sua amiga, Elisangela Sabai. Para a pedalada, que acontece pelo menos aos finais de semana, reúnem-se colegas que, por terem na bicicleta sua paixão em comum, se debruçam em aventuras de médias e longas distâncias. De cada tour, voltam mais fortes e mais unidos.
“A Elisangela já tinha uma bike profissional, mas a gente não sabia nada. Achava que era só pegar a bike e rodar. O nome do grupo surgiu por isso, porque no começo, entramos errados numa rua e um dos rapazes que viu isso na ida, na volta ia gritando, ‘tô passando, tô passando’. Nós olhamos e criamos com isso o nome do grupo”, conta, aos risos, Elisangela. E embora o grupo seja novo – ele foi formado em janeiro deste ano – os ciclistas mostram maturidade de gente grande. “Já fui até Irineópolis, que deu ida e volta, 80 km. Em quatro horas e 20 minutos, porque na volta, estraguei o meu joelho”, conta Cristiane, orgulhosa e já com uma linguagem típica de ciclista experiente, falando os quilômetros abreviados mesmo, “káemes”. A bicicleta ensinou ainda o que é a amizade, respeito aos limites seus e do companheiro, regras, foco e determinação. De quebra, vem as altas doses de alegria, que aliviam os trechos mais pesados e iluminam as descidas do caminho. “Somos amigos, nos encontramos pelo menos uma vez por semana. É sagrado uma janta. Já se criou um elo mais forte ainda, além do pedal”, sorri Cristiane. E na prática, os planos são ambiciosos. A ideia do ‘Tô Passando’, é pedalar até o litoral de Santa Catarina no final deste ano. Não é pouca coisa: a distância até lá, partindo do centro do Vale do Iguaçu, é de aproximadamente 300 ‘káemes’. “Vamos parando, tomando banho, trocando de roupa. Não temos todo preparo físico, mas é nossa meta”, sorriem as fundadoras do grupo.
“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”, como ensinou Clarice Lispector, combina com perfeição na descrição de quem tem o pedal como aliado. De fato, liberdade parece ser a principal sensação que a bike dá. “E é viciante! Pois se estamos de carro não há tempo para distrações, é necessário atenção ao trânsito, para evitar acidentes ou transtornos. Desse modo, fica difícil apreciar a paisagem que está aos arredores”, comenta a educadora física, Vivian Nielsen Yabu.
Para ela, a bicicleta é um passeio na infância. “Quando ainda estamos aprendendo a pedalar e temos aquela sensação de insegurança e prazer ao mesmo tempo. Quando somos crianças, não temos preocupações e aproveitamos ao máximo o momento, aí pode estar a conexão com a liberdade. Nesse momento, a mente se esvazia, e nos lembramos como é bom e relaxante ser criança”, afirma. “Vento no rosto é aquela sensação de estar vivo, de aproveitar o momento, de sentir os músculos da coxa queimando, aproveitando belas paisagens”, sorri.
70% tem magrela em casa
Dados da Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo) mostram que o Brasil possui 70 milhões de bicicletas (o líder é a Holanda, país onde de cada dez pessoas, nove pedala). O Brasil é ainda um dos líderes mundiais em produção. Leves, relativamente baratas, por ocupar pouco espaço na garagem – ou até dentro do apê – e por não poluir o meio ambiente, as bicicletas lideram esses dados expressivos.
No Vale do Iguaçu, os números acompanham as estatísticas nacionais. Embora não sejam oficiais, as secretarias de Planejamento de União da Vitória e de Porto União, estimam que aproximadamente 70% da população tenha bicicleta, embora nem todos pedalem com frequência.
O secretário da Pasta em União, Clodoaldo Goetz, faz parte da estatística, só que ele pedala. Vai de casa para o trabalho sobre duas rodas, pedala nos finais de semana com sua filha e vistoria as obras também em cima da bicicleta. “Ando no final de semana de bicicleta para ver o que é preciso fazer no trânsito. Ai, no outro final de semana, pedalo para ver se foi feito. Além de trabalhar, já faço exercício”, conta. O trabalho disfarçado de passeio, em muitas ocasiões, tem a companhia da filha do secretário que, segundo ele, adora sentar na garupa da bike do papai.
Entendendo o percentual de proprietários de bicicletas, bem como à existência dos grupos de ciclistas e a procura das bikes para o exercício físico, especialmente desde 2016, as prefeituras vem investindo em ciclovias. São cerca de 20 quilômetros dessa malha alternativa, disposta nas duas cidades (veja gráfico). A extensão ainda fica aquém da necessidade de duas cidades unidas por um trilho e que somadas, tem uma população de aproximadamente cem mil habitantes. A ideia, garantes as secretarias, é de em breve, unir as ciclovias e ampliá-las.
ENDORFINA NA VEIA!
É o hormônio produzido na glândula hipófise e que gera sensação de recompensa e bem-estar no organismo. “É produzido em grande quantidade nas atividades prazerosas e está associada a relaxamento, alívio e contentamento generalizados. Ao ser liberada no corpo, a endorfina aumenta a disposição física e mental do indivíduo e melhora a resistência imunológica”, explica Vivian Yaubu
Sem a bicicleta, papel seria carregado nas costas
São cinco pessoas em casa. Todas, dependem do valor da venda do papel para sobreviver. Nas ruas, são os chefes da família, o casal Eliseu e Guiomar Inês de Freitas, que labutam, diariamente. Sem tirar o sorriso dos lábios, orgulham-se ao contar que em mês bom, “dá pra tirar uns R$ 700”. Mês bom quer dizer, aquele onde o encontro de papel é farto, seja na forma de papelão, jornais, embalagens de brinquedos. Quanto mais, melhor.
Obviamente, não dá para carregar tudo no braço: é na bicicleta que o casal empilha o que encontra nas ruas de União da Vitória e de Porto União (em média, 40 quilos diários) e que no final do dia, se transforma em cifras na negociação com quem compra a papelada toda.
“É uma mão na roda. Sem a bicicleta, teria que juntar tudo e carregar nas costas. Impossível”
Nesse mundo dos negócios recicláveis, a bike é protagonista. Ela garante a chegada do casal até o centro – eles moram no bairro São Gabriel, distante cerca de oito quilômetros do centro de União da Vitória – garante o deslocamento deles pelas ruas e com isso, um leque maior de opções para o encontro do material que tanto buscam. “Ando com a gaiota (sic) e o meu marido cata o papel da rua com a bicicleta”, conta Guiomar. “É uma mão na roda. Sem a bicicleta, teria que juntar tudo e carregar nas costas. Impossível praticamente”, completa Eliseu. Todos os dias, com chuva ou sol, a bicicleta cumpre seu papel – e garante o encontro de papel ao casal.
Para o trabalho, de bike
Desde os 15 anos, Gislei Ferreira pedala muito e quando começou a trabalhar como professora, usa a bicicleta como meio de transporte. Na bike, leva suas coisas pessoais e seu bem mais precioso, a filha mais nova, Evangeline, de quatro anos. “Só se chover nós vamos de ônibus ou o meu marido leva de carro”, conta. Gislei sobe na bicicleta, coloca Evan na garupa e percorre, todos os dias, uma distância relativamente curta.
Mas, no percurso está a travessia por uma longa ponte, a férrea, um dos marcos mais emblemáticos de divisão de limites no Vale do Iguaçu. Otimista, mãe e filha aproveitam a paisagem e em minutos estão em casa, ou no trabalho. “Moro no bairro São Joaquim. Não acho muito longe, nem compensa pagar ônibus”, diz. Gislei e “Evan”, sempre juntas na mesma bicicleta, gostam tanto de pedalar que já chegaram a negar carona. “Teve uma vez que o pai foi nos encontrar para trazer ela (Evan) de carro, e ela chegou brava com ele e chorando, pois, queria vir de bike comigo!”, lembra a professora.
“Fiz a faculdade inteira de bike”
A bicicleta não é apenas o meio de transporte de Gislei. Ela lhe garantiu entrar nas estatísticas de quem tem Ensino Superior completo. A professora, que acaba de concluir a graduação em Psicologia, se orgulha ao lembrar da participação da bicicleta para a execução do curso. “Fiz a faculdade inteira de bike”, conta.
É pedalando que se aprende
Sentimentos de leveza, de liberdade e de superação, como narrados na reportagem, não são os únicos. Quem pedala, tem a chance de sentir a superação, seja por deixar a rodinha de lado ou por encarar quilômetros na estrada, o frio, o vento, o calor. Obstáculo atrás de obstáculo, é pedalando que se aprende. “Metaforicamente a bicicleta nos remete ao nosso próprio desenvolvimento, do aprender a andar. A gente começa rastejando, se segurando na mesinha, no sofá, até soltarmos a mão e dar os primeiros passos. Começamos com um triciclo, com uma bicicleta com rodinha e com o passar do tempo, aumentamos o tamanho da bicicleta e nossa coragem”, explica a psicóloga Daniele Janiewski.
É pedalando que se aprende mais do que o equilíbrio. A bike também tem papel social. “Ela fortalece vínculos com amigos que já temos e que gostam de pedalar. A gente pode pertencer a um grupo de ciclismo, participar de trilas. Sem contar que a atividade física que o ciclismo traz para a saúde é muito bom. Faz bem para tudo, inclusive na produção dos hormônios da felicidade!”, diz Janiewski.
É pedalando que se aprende – e se entende – que a bicicleta é uma ferramenta de integração. “Especialmente nas pedaladas em grupos. De repente, aparece um obstáculo no caminho e todo mundo se ajuda. É isso o que a gente vê. Ela desenvolve as habilidades sociais”, avalia. Ela integra, conforme a profissional, a família. “É comum a gente ver avós com os netinhos pedalando. A bicicleta é algo acessível para todos na família”.
E é assim, pedalando que se aprende.