Zilda Santos era uma moça bela. Pré-adolescente, chamava a atenção por exibir olhos grandes, cor de amêndoa, tranças longas. A cobiça que a seguia foi além de ser um pecado capital. Aos 13 anos, a menina natural de Itajaí, em Santa Catarina, viu sua vida terminar, de maneira brutal. Zilda morreu afogada, depois de ficar em cárcere privado e de sofrer intensos abusos sexuais.
O famoso ‘Crime do Iguaçu’ mexeu com a sociedade de União da Vitória e Porto União no ano de 1948. Mas ficou só nisso. Nunca ninguém foi preso, julgado, condenado. Até hoje os nomes seguem velados e quando mencionados, quase passam imperceptíveis, tamanho nível do sussurro que os acompanham.
Um crime perfeito? Ou mal resolvido? Sherlock Holmes responderia com sua frase clichê. “Elementar, meu caro Watson”. Na história de Zilda, sobraram elementos para se chegar aos culpados, mas nunca se chegou. E embora se tenham passado 71 anos desde o episódio, alguns crimes mais recentes, também conseguem escapar dos olhos – e da Justiça.
Nem a tecnologia, que garante a colocação de câmeras de segurança em residências, prédios, lojas e empresas vence a capacidade da maldade. E são muitos “olhos eletrônicos”: mais de mil, de acordo com a TeleUnião, uma das empresas que presta o serviço de instalação desses equipamentos. Além dessa massa particular, projetos públicos de monitoramento também tentam flagrar – ou inibir – os crimes.
Em Porto União, conforme o comando da Polícia Militar, o projeto ‘Bem-Te-Vi’ mantém oito câmeras em funcionamento (uma foi retirada temporariamente em virtude da construção da ponte de ligação ao Distrito de São Cristóvão). Elas estão divididas em pontos estratégicos dos bairros e centro, segundo informou a Polícia.
Mas, nem olhos humanos, nem olhos robóticos, captam rostos, desfigurando a esperança dos familiares de quem perdeu a vida de maneira violenta.
Um crime perfeito? Ou mal investigado? Seja qual for a resposta, a saudade permanece no coração de quem perdeu um familiar, um amigo, para a violência. E quem descansa em paz? Depois de um crime, e de um crime sem solução, talvez ninguém que esteja envolvido. De Zilda até hoje, milhares de caso terminam engavetados, por não chegaram a nenhuma conclusão.
“Mais grave do que a absolvição de um culpado é a condenação de um inocente”
A falta de resolutividade, seja pela imperícia ou pela articulação dos próprios envolvidos, atinge níveis expressivos, em todo o País. Dados do Monitor da Violência, feito pelo G1 e divulgados recentemente na Globo, mostram que a taxa de solução dos casos é de 28%. Informações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) corroboram com os dados do G1. De acordo com o órgão, apenas entre 5% e 8% dos homicídios no País são solucionados. Isso significa que mais de 90% ficam impunes e sem solução.
Os levantamentos mostram ainda que os crimes acontecem geralmente à noite, nos finais de semana e por arma de fogo. Os homens são a maioria das vítimas. No Vale do Iguaçu, a falta de um final nos casos de crimes violentos também é uma realidade. Sobram marcas, nas entidades de segurança e principalmente, no coração dos familiares e amigos das vítimas.
Convive com essa mistura de sentimentos há mais de nove anos, a família do contador Remi Gleich. Ele foi encontrado morto, com marcas de tiros, no portão de sua casa, uma chácara no bairro Dona Mercedes, em União da Vitória. “Não tenho mais esperança que isso seja resolvido. Acho que nunca vão chegar a um assassino, a um mandante. Na época da investigação surgiram denúncias, cartas anônimas. A Polícia foi atrás, perdeu tempo atrás disso, coisa que não teve nada a ver. Eu gostaria de saber quem foi, até porque de repente o mandante está andando do nosso lado e a gente não sabe. A gente fica inseguro”, lamenta uma das filhas de Remi, Luana Riesemberg Gleich Ritzmann.
“Para gente é doloroso, difícil viver com essa impunidade. A gente não sabe quem foi. É muito difícil”
“Nosso pai era amoroso, um avô amoroso. As crianças sentem muita falta dele. Para gente é doloroso, difícil viver com essa impunidade. A gente não sabe quem foi. É muito difícil”. Remi foi assassinado em maio de 2010, quando chegava em casa, uma chácara, no bairro Dona Mercedes. O caso repercutiu na comunidade na época. Até agora, ninguém foi preso ou responsabilizado pelo caso.
Entraram recentemente para essa mesma galeria, a morte do dentista, Gilberto Schumann, do diretor do Senac de Porto União, Eliezer Lourenzzetti e do bebê encontrado no lixo (relembre os casos no infográfico). A reportagem procurou os familiares e colegas dessas vítimas, porém, por ainda estarem fragilizados, preferiram não se manifestar sobre o assunto (com exceção da família de Remi).
Crime perfeito
Cidades de porte médio, como é o caso de União da Vitória e Porto União, conseguem – ainda – deixar um crime sem final. Sem pistas, sem testemunhas, a investigação fica de mãos amarradas, encerrando as investigações, deixando em aberto a justiça e aumentando as estatísticas que tratam dos crimes violentos. Para entender a complexidade de tudo isso, é preciso voltar as enciclopédias jurídicas e mergulhar na definição dessa palavra curta, com cinco letras, mas que impacta: crime.
O criminalista, Ernani Bortolini faz um resumo. “O crime é uma conduta estipulada pela Lei como um ataque ou uma lesão a um bem jurídico de terceiro. É mais do que uma conduta entendida como grave, passível de várias sanções, a mais grave, a prisão”. E nem tudo é o que parece. O fato de se encontrar alguém caído, por exemplo, machucado, desmaiado, não significa, em um primeiro momento, que se trata de uma cena de crime, imediatamente isolada pela polícia como se vê nas séries policiais.
“Só se tem certeza quando há uma sentença definitiva. Podemos encontrar alguém assim, mas isso pode ter sido um acidente, uma tentava de suicídio, a pessoa provadora de um crime. O procedimento é o atendimento, depois um inquérito apurado. Nem tudo que parece ser crime, é crime. Mais grave do que a absolvição de um culpado é a condenação de um inocente”, defende.
O advogado não acredita em crime perfeito e tem na própria imperfeição natural do ser humano, a justificativa. Para Bortolini, falta apuração, fruto da demanda de trabalho de uma delegacia e de um Estado que pouco investe em segurança, especialmente, no policiamento. “Crimes perfeitos não existem. O crime é um ato difícil. O que existe é a dificuldade da investigação, tanto a nível policial quanto judiciário, não pelo trabalho desenvolvido, mas pela falta de investimento no setor, um tema não tão simpático”. A perfeição descartada se justifica ainda até quando há confissão de um crime. “É uma prova relevante, mas, devemos ter em mente de que é ela não mais a rainha das provas. Ela pode ser uma confissão comprada, forçada”.
Apenas entre 5% e 8% dos homicídios no País são solucionados. Isso significa que mais de 90% ficam impunes e sem solução, conforme o CNJ
Compartilha de opiniões bastante similares o delegado da 4ª. SDP, Douglas Carlos de Possebon e Freitas. Para ele, não existe crime perfeito, mas de difícil solução. “Crime perfeito não deveria existir. Deveríamos levantar todo tipo de prova para apurar a autoria, mas alguns casos, não conseguimos. Lá em Cruz Machado (leia no quadro), o crime daquelas meninas, foi um ano de investigação até chegar a autoria, mas é muito difícil. Quando nossa equipe se dedica em um fato, ficam 30 fatos sem apuração e acontecem os crimes perfeitos”.
As condições de investigação da 4ª. SDP, em União da Vitória, de fato não são as melhores. Para dar conta da apuração dos casos que acontece na cidade e nos municípios vizinhos, há somente quatro investigadores. “Que ainda levam intimações, fazem levantamentos do local em todas as cidades que atendemos”, destaca o delegado. Entra na lista de atribuições (veja outras informações nos infográficos), a apuração dos mais múltiplos tipos de crime: da ameaça e calunia aos assassinatos com requintes de violência.
“Quando nossa equipe se dedica em um fato, ficam 30 fatos sem apuração e acontecem os crimes perfeitos”
Além da demanda, a Polícia Civil trabalha com prazos. Por exemplo, quando uma pessoa é presa em flagrante, o inquérito precisa ser encerrado em dez dias. No caso de tráfico de drogas, o prazo é maior: são 30 dias para o ponto final. Contudo, diante da demanda e da escassez profissional, a “juntada” de dados acontece depois, às vezes, muito tempo depois.
Para conhecer as atribuições da Policia Civil, basta acessar o site (neste caso, como ilustração, os endereços são da instituição do Paraná) e procurar pelas atribuições: decretos e outros documentos são públicos
“Quando se tem crimes complexos e poucos funcionários, há inquéritos tramitando há quatro, cinco anos”, pontua Possebon. O tempo é inimigo na investigação – e uma derrota para as vítimas. Além do time para a apuração, os crimes prescrevem, ou seja, tem data de validade. O crime de homicídio, por exemplo, prescreve em 20 anos. “O autor que cometeu o crime se aparecer depois desse tempo, não é mais preso”, aponta o delegado.
Um crime perfeito?
As meninas de Cruz Machado
Embora complexo, o assassinato das adolescentes, Camile Loures das Chagas, 13, e Solange Vitek, 16, foi resolvido pela modesta equipe da 4ª. SDP de União da Vitória. Foram meses de trabalho até que o caso fosse solucionado: um jovem, vizinho de Camile, confessou que matou as meninas. Os corpos foram encontrados meses após o registro do desaparecimento das adolescentes. Camila foi vista pela última vez em 15 de dezembro de 2015, a poucos metros de casa. Solange, em 25 de abril de 2016, igualmente perto de casa.
“Fizemos as oitivas até que em julho (de 2016) encontramos parte de uma ossada, que poderia ser de Solange, pelos pertences próximos. Mobilizamos a partir disso toda a comunidade, as forças de segurança, com bombeiros, militares, cães farejadores, fizemos buscas. Não tivemos êxito em encontrar mais ossos. No dia 11 de agosto, encontramos uma outra ossada, que pelos pertences, indicavam ser de Camile. Iniciamos novas oitivas a partir disso. Na abordagem desse adolescente que já tinha prestado declarações, ele caiu em contradição, até que confessou a autoria”, disse em coletiva de imprensa o delegado Douglas Possebon.
O adolescente, que ficou recluso uma cada para menores, na Fazenda Rio Grande (PR) está solto. Ele matou as adolescentes asfixiadas.