Saída de Moro pode mudar a cara do bolsonarismo

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Atualizado há 5 anos

O professor Pablo Ortellado é um dos principais pesquisadores do debate público no meio digital no Brasil (Crédito: Waldemir Barreto/Agência Senado)
O professor Pablo Ortellado é um dos principais pesquisadores do debate público no meio digital no Brasil (Crédito: Waldemir Barreto/Agência Senado)

A maior adesão à política de isolamento social parecia estar gradualmente afastando a classe média de Bolsonaro, num processo lento, porém contínuo. Mas a saída do ex-ministro Sergio Moro do governo tende a acelerar de vez este processo, levando consigo parcela significativa deste grupo para quem o ex-juiz é o mais importante símbolo da luta contra a corrupção.

Vale a pena, antes de tudo, resgatar um pouco o que foi a campanha eleitoral de Bolsonaro. Ela pode ser facilmente estudada porque foi bastante concentrada nos meios digitais. Isso se deve, de um lado, ao pouco tempo de propaganda no rádio e na TV que Bolsonaro dispunha e, por outro, à impossibilidade de fazer campanha de rua devido a sua hospitalização.

Quando olhamos o conteúdo desta campanha digital, vemos que nela prevaleceram basicamente dois tipos de conteúdos: de um lado, conteúdos contra os partidos políticos tradicionais, acusados de corrupção; de outro, a defesa da família tradicional que estaria ameaçada pela ideologia de gênero promovida pelo feminismo e pelo movimento LGBT.

Essas duas linhas principais de campanha que foram articuladas num discurso antielitista comum (contra as elites políticas e contra as elites culturais progressistas), na verdade, miravam, cada uma delas, uma classe social distinta. O discurso em defesa da família tradicional ressoava mais nos grupos religiosos populares e o discurso anticorrupção encontrava mais adesão nas classes médias que tinham se engajado na campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff.

A crise do coronavírus começou a abalar essa articulação virtuosa. Por uma combinação de maior escolaridade e maior capacidade de aderir ao isolamento social – porque o trabalho intelectual pode ser exercido à distância – a classe média adotou um comportamento divergente da postura contrária às recomendações sanitárias adotada pelo presidente.

A saída de Sergio Moro do governo pode dar um empurrão adicional ampliando essa desconexão. É preciso lembrar que o desembarque do ex-juiz da Lava Jato acontece na mesma semana que o governo começou tratativas com o centrão para trocar cargos em ministérios e agências por apoio político no Congresso.

Moro não era apenas o ministro mais popular de Bolsonaro, era um ministro quase duas vezes mais popular do que o presidente. Ele era também o maior símbolo do movimento anticorrupção no governo.

Quase todas as páginas de Facebook forjadas na campanha pelo impeachment homenageiam Sergio Moro. Sua saída do governo foi lamentada e sua passagem pelo ministério foi elogiada por MBL, pelo Vem Pra Rua e pelo grupo empresarial Brasil 200. Pela primeira vez desde que assumiu a presidência, Bolsonaro teve redução no número de seguidores nas mídias sociais – uma redução pequena, mas importante pelo seu ineditismo.

As próximas pesquisas de opinião vão mostrar o impacto da saída de Moro no apoio ao governo Bolsonaro. Seria de se esperar uma redução no apoio entre aqueles com renda superior a cinco salários mínimos e educação superior, que é o público que foi mais diretamente envolvido no movimento anticorrupção. Apesar disso, no cômputo geral, é possível que essa perda de apoio seja compensada por um aumento do apoio entre a população mais pobre, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste.

Embora para algumas famílias da classe média e classe média baixa o auxílio emergencial seja insuficiente, para famílias mais pobres o recebimento de dois auxílios somando R$ 1,2 mil mensais pode significar um incremento significativo nos rendimentos habituais anteriores à crise.

Bolsonaro pode se beneficiar com um aumento de apoio deste segmento se conseguir assumir a paternidade da medida – ainda que, de direito, ela devesse ser atribuída ao Congresso, já que a proposta original de Bolsonaro era de apenas R$ 200 por família.

Se esse ganho de popularidade junto aos mais pobres efetivamente acontecer, ele pode não apenas compensar a perda de apoio na classe média, mas até gerar um aumento geral no seu índice de aprovação.

Isso não apenas apontaria para uma mudança na composição social do bolsonarismo, como para sua redefinição no sentido de um populismo conservador-religioso e menos marcado pelo compromisso com o combate à corrupção.

* Pablo Ortellado é doutor em filosofia e professor do curso de gestão de políticas públicas da USP

Coluna originalmente publicada no portal UOL