Profa. Marilucia Flenik, Dra.
O NAVIO NEGREIRO: ‘Stamos em pleno mar, escreveu Castro Alves…
AS ESCRAVIDÕES DE HOJE: estamos em plena luta, dizemos nós, os escravos de hoje…
Nesta semana em que se comemora o 7 de Setembro, o dia da Independência do Brasil, sempre é bom recordar o que temos de melhor na nossa cultura. É oportuno lembrar o movimento pela libertação dos escravos, que teve em Castro Alves, um jovem estudante de Direito, um porta voz.
Os versos do poema “Navio Negreiro” servem de metáfora para se reclamar de todas as “escravidões” a que estamos submetidos. Seja física, psicológica, econômica, política, socialmente, enfim, muitas vezes as articulações humanas acontecem na relação “senhor/escravo”. Sempre há aqueles que mandam, e aqueles que obedecem; a própria pessoa coloca em si as correntes da escravidão, pois não encontra coragem para ser livre. É mais fácil obedecer ao superior, sofrer calada a opressão familiar, não lutar politicamente, manter-se alheia e não reagir.
Os versos de Castro Alves são eternos e enriqueceram a língua portuguesa. Relatam em alto e bom som o sofrimento dos africanos, que contribuíram largamente à formação do nosso povo gentil. A gente nunca cansa de ler
‘Stamos em pleno mar
Era um sonho dantesco… o tombadilho,
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar do açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças… mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.
E ri-se a orquestra, irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Se o velho arqueja… se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…
Presa dos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece…
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra
E após, fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!…”
E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais!
Qual num sonho dantesco as sombras voam…
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanaz!…
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?… Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz!
São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz.
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão…
Homens simples, fortes, bravos…
Hoje míseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razão…
São mulheres desgraçadas
Como Agar o foi também,
Que sedentas, alquebradas,
De longe… bem longe vêm…
Trazendo com tíbios passos
Filhos e algemas nos braços,
N’alma lágrimas e fel.
Como Agar sofrendo tanto
Que nem o leite do pranto
Têm que dar para Ismael…
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis…
Passa um dia a caravana
Quando a virgem na cabana
Cisma das noites nos véus…
…Adeus! ó choça do monte!…
…Adeus! palmeiras da fonte!…
…Adeus! amores… adeus!…
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…
E existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!…
Silêncio!… Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no seu pranto…
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança…
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!…
…Mas é infâmia demais…
Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo…
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!