A PANDEMIA DA VIOLÊNCIA

Isolamento social pode ter acelerado situações que fatalmente aconteceriam

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Atualizado há 4 anos

No País, o primeiro caso confirmado de Covid-19 foi no dia 26 de fevereiro do ano passado. Menos de um mês desde esta data, os plantões policiais já registravam um aumento de situações de violência doméstica, envolvendo crianças e na maioria absoluta, mulheres. Os desdobramentos da pandemia, que impôs o isolamento social, fizeram os índices crescer ainda mais.

Apenas em São Paulo, os atendimentos da Polícia Militar para mulheres vítimas de violência aumentaram 44,9%, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O feminicídio, o fim mais trágico de um ato violento, cresceu 22,2% entre março e abril de 2020, em 12 estados brasileiros, na comparação com 2019, de acordo com o documento, Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-109. O Ligue 180, central nacional de atendimento à mulher criado em 2005, viu crescer em 34% as denúncias.

Na região Sul, os casos também denunciam crescimento da violência. No Paraná, dados da Secretaria da Segurança Pública (Sesp), apontam para um aumento de 8,5% no primeiro trimestre de 2020, na comparação com o mesmo período de 2019. Na capital Curitiba, no mesmo período, também houve um crescimento de 1,56% nos casos de violência doméstica. Nos primeiros três meses do ano passado, foram 2.023 situações, ante 1.992 casos no trimestre anterior.

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Em Santa Catarina, informações do Tribunal de Justiça (TJSC), mostram que a violência doméstica contra a mulher não para de produzir números impressionantes: são centenas de ocorrências de ameaça, lesão corporal, injúria, calúnia, difamação e dano são registradas todos os dias nas delegacias. Conforme dados da Secretaria de Segurança Pública, nove mulheres são estupradas diariamente no Estado, um número acima da média nacional. Na Justiça catarinense, há 41.743 processos em andamento envolvendo violência doméstica contra a mulher – em número, essas ações só perdem para as relacionadas ao tráfico de drogas. Há também 47 casos enquadrados no crime de feminicídio.

“Pudemos observar um fenômeno do aceleramento de situações latentes, ou seja, situações que aconteceriam de qualquer maneira e que por algumas razões não aconteciam ou estavam caminhando a passos lentos. Com o isolamento social, muitos fenômenos foram acelerados”, avalia a psicóloga, Daniele Jasniewski.

Para ela, a violência (sexual, psicológica, patrimonial, física e moral) aconteceria em um momento ou outro, só que pulou etapas e teve a pandemia como gatilho. Na prática, a casa que deveria ser o lugar mais seguro do mundo, se tornou para muitas mulheres, seu maior pesadelo.

“Sem lugar seguro, elas (as mulheres) estão sendo obrigadas a permanecer mais tempo no próprio lar junto a seu agressor, muitas vezes em habitações precárias, com os filhos e vendo sua renda diminuída”, pontua o FBSP.


Beco sem saída

Sete dias da semana, vinte e quatro horas por dia. Em todo o mundo, homens e mulheres se viram confinados por muito mais tempo juntos. No entanto, a maior medida preventiva contra o coronavírus se tornou para alguns, o que faltava para desencadear um ciclo de violência.

“Existem casais que só dão certo porque não se veem todos os dias ou se veem pouco. Com a pandemia, alguns tiveram que conviver e enxergar melhor o outro. Antes disso, a rotina era o trabalho, o gerenciamento das contas, era voltado para diversas coisas menos para a relação afetiva. Passam-se os anos e o casamento dura, porque o casal está olhando para fora. A pandemia nos fez olhar para dentro e de repente, foi preciso conhecer a pessoa, ver o que ele, o que ela, nunca havia feito”, comenta Daniele. É aí o berço para o nascimento dos conflitos e que se não forem manejados, tendem à rupturas. Piorados, levam às agressões e não raro, às grandes tragédias, com lutos e cicatrizes.

O assunto é tão sério que em outubro, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Feminicídio, da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) promoveu a segunda Audiência Pública Remota sobre o ‘Enfrentamento às violências contra mulheres e meninas em contexto de pandemia’. Na reunião, Arlete Sampaio (PT) destacou o aumento de denúncias relacionadas à violência contra as mulheres no DF. “A mulher passou a conviver com o agressor, por isso, a situação está cada dia mais complicada e a pandemia contribuiu para ampliação desses casos”, explicou.


Desde a entrada em vigor da Lei 11.340 de 2016, mais conhecida como Lei Maria da Penha, uma série de medidas e garantias foram formuladas pelos instrumentos legais para coibir a violência doméstica e proteger suas vítimas. Entre as inovações trazidas pela lei, destaca-se a criação das MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA, isto é, tutelas de urgência autônomas que podem ser concedidas por um juiz, independentemente da existência de inquérito policial ou processo cível, para garantir a proteção física, psicológica, moral e sexual da vítima contra o seu agressor.


SOS

O isolamento é outra consequência do isolamento. Como assim? Conforme levantou o Fórum Brasileiro, mesmo com dados altos, o período ainda não contabiliza tudo o que realmente vem acontecendo entre quatro paredes. Ao lado do companheiro, refém dentro do lar, muitas mulheres não têm conseguido sair de casa para fazer a denúncia ou temem realizá-la pela aproximação do parceiro.

Isso em território nacional e além das fronteiras. Na Itália, por exemplo, País que apresentou uma das situações mais críticas na pandemia de coronavírus, foi registrada queda de 43% das denúncias/ocorrências de crimes domésticos. De acordo com dados oficiais divulgados pelo comitê parlamentar de violência contra mulheres, os relatórios da polícia sobre abuso doméstico caíram para 652 nos primeiros 22 dias de março, comparado a 1.157 no mesmo período de 2019. Também a maior linha de apoio à violência doméstica do País, o Telefone Rosa, afirmou que as ligações caíram 55% desde o princípio do isolamento: foram apenas 496 chamadas nas duas primeiras semanas de março, onde antes eram 1.104 no mesmo período do ano passado.

No Brasil, foi por entender as dificuldades em pedir socorro, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) lançaram em junho passado, a campanha Sinal Vermelho para a Violência Doméstica. A iniciativa teve como foco ajudar mulheres em situação de violência a pedirem ajuda nas farmácia. “O objetivo da campanha é oferecer um canal silencioso, permitindo que essas mulheres se identifiquem nesses locais e, a partir daí, sejam ajudadas e tomadas as devidas soluções”, disse na ocasião, a coordenadora do Movimento Permanente de Combate à Violência Doméstica do CNJ, a conselheira Maria Cristiana Ziouva. O projeto contava na ocasião do lançamento, com a parceria de dez mil farmácias e drogarias em todo o Brasil.

Mas apesar de todos os esforços,  existem ainda outros obstáculos,  problemas que independentes da pandemia, bloqueiam os registros. Não é a toa, por exemplo, que segundo uma pesquisa DataSenado de 2013, 20,7% das mulheres que admitiram ter sofrido violência doméstica nunca procuraram a polícia. “Às vezes, o processo de denunciar acaba sendo mais violento pra essas mulheres do que a própria violência”, disse à BBC Brasil Silvia Chakian, promotora de Justiça e coordenadora do GEVID (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica).

Outro problema é falta de amparo. Conforme levantou a BBC, são 368 Delegacias da Mulher para 5,5 mil municípios no Brasil. O número de Delegacias da Mulher no País ainda é bastante restrito. Milhares de cidades não contam com unidades especiais desse tipo – são 368 espalhadas por 5.597 cidades brasileiras. Outra grande barreira é a incerteza da punição do agressor.

A dificuldade em comprovar a violência parece se refletir nos dados que comparam números de denúncias com o de agressores punidos. Informações do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 2.439 homens estavam presos por crimes de violência doméstica até junho de 2014. Para se ter uma ideia, no mesmo ano de 2014, 52.957 mulheres denunciaram casos de violência – entre eles violência física, psicológica, moral, sexual – uma média de 145 por dia.

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Violência no Vale

Em Porto União, os dados de violência e seus boletins de ocorrência (inquérito, prisão em flagrante e medida protetiva), são menores na comparação com 2019, contudo, não menos importantes. Na avaliação do delegado regional, Nilson Luis de Oliveira Cezar, é que de o número menor de pedidos de ajuda, é fruto de um trabalho de prevenção. Daí, os números de queixas foram menores. A cidade não registrou nenhum caso de feminicídio em 2020.

“Em função da pandemia, além do trabalho investigativo, a Polícia Civil de Porto União realizou importante trabalho preventivo, através de operações de fiscalização aos estabelecimentos comerciais, o que contribuiu para o aumento da sensação de segurança da população e redução dos crimes em nossa região”, diz. Na comparação com 2019, o número de Inquéritos Policiais instaurados teve redução de 27%; de lavratura de autos de prisão em flagrante, 20%; e medidas protetivas de urgência requeridas ao Poder Judiciário, redução de 17%.

Já União da Vitória foi na contramão dos dados da vizinha cidade catarinense. No município, os casos de violência doméstica aumentaram. Em apenas 9 dias, entre 4 e 12 de janeiro de 2021, foram instaurados 76 procedimentos, sendo 32 medidas protetivas e 59 atendidos na Delegacia da Mulher. Isso representa um crescimento de situações em 30%, na comparação com janeiro de 2020, período anterior à pandemia.


 Marcas

Redes de proteção de todo o mundo relatam as consequências mentais de quem foi vitima de agressão. Diferente de um hematoma, por exemplo, as feridas emocionais levam tempo para serem saradas, se é que são.

“As mulheres perdem o apoio social, as vezes não recuperam mais, os familiares e os amigos ficam chateados com isso. ela sente vergonha por tudo o que passou. São inúmeras as consequências. E nem sempre se afastar do agressor, isso dá segurança ou é o fim do problema. Algumas mulheres tem filhos com o agressor e essas relações não terminam com o episódio da violência. Os impactos são amplos e podem ser carregados pelo resto da vida”, disse para o podcast EntreMentes, Marcela Ortolan, psicóloga da Defensoria Pública do Paraná que se dedica às questões de gênero.

Além da participação efetiva do policiamento nos bairros, por exemplo, educar cidadãos pode resultar na construção der personalidades fortes, educadas e respeitosas. Esse é um dos pilares que sustenta para o combate à violência o juiz Carlos Eduardo Mattioli Kockanny, da Vara de Família de União da Vitória. “Trabalhar isso nas matérias curriculares, de todos os níveis da educação, do Infantil aos níveis do Ensino Fundamental. Esse assunto deve ser tratado no Ensino Médio e faculdades também, até porque temos visto muitos problemas envolvendo violência dentro das instituições de Ensino Superior. O tema precisa ser tratado com maior responsabilidade e consideração. Não se pode sonegar a temática”, defende.

Aliado a isso, Mattioli defende a ampliação das informações à mulher vitima da violência. Para o juiz, ela precisa saber para onde ir e com quem contar caso precise de ajuda. “A mulher vítima de violência, é importante que ela compreenda o que está acontecendo e possa sair disso, tendo segurança para tomar decisões difíceis, como sair de casa, pedir o afastamento do companheiro, ir na delegacia. Isso envolve toda a sociedade e os órgãos públicos, envolve as pessoas conhecidas também e instituições que podem ajudar”, defende.

Soma-se ao contexto de encontrar informação e ajuda, entre o terceiro ponto defendendo pelo juiz: a preparação de quem está na linha de frente do atendimento. “Lamentavelmente na maioria dos casos, as mulheres encontram algumas entidades que não estão bem preparadas para atender. O atendimento é deficiente, demorado, nada condizente com os problemas que elas passam. Ainda temos visões machistas. Precisamos reformatar. Precisamos que as policiais e a Justiça, enfim, sejam mais acolhedores, usando a empatia, se colocando no lugar do outro”, afirma. “É preciso entender que a mulher às vezes quer denunciar, mas não que o processo vá adiante. Ela faz por medo, vergonha, por não querer o mal para o companheiro”.

A convivência intensa e seus desdobramentos são mais algumas lições da pandemia. “Mas lembre-se, que a culpa não é sua. Procure ajude. É isso que pode te dar uma melhor qualidade de vida”, lembrou Marcela ao EntreMentes. Se puder ajudar alguém, descumpra o protocolo: não se isole.

 

“O atendimento é deficiente, demorado, nada condizente com os problemas que elas (as mulheres) passam. Ainda temos visões machistas. Precisamos reformatar” – do juiz Carlos Eduardo Mattioli Kockanny, da Vara de Família de União da Vitória.