FERNANDA BRIGATTI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O aviso em tom de ameaça chega antes por email e depois pelos Correios. Diz que o destinatário da notificação tem um prazo para pagar um valor ou um processo judicial será iniciado. A infração: violação de direitos autorais pelo download de um filme via internet.
A origem dessas notificações está em ações judiciais nas quais empresas que alegam ser detentoras desses direitos pedem às concessionárias de internet o acesso aos dados de usuários que, segundo elas, estariam violando a lei ao baixar filmes por meio de sites como uTorrent e BitTorrent.
E eles têm conseguido decisões antecipadas (liminares e tutelas de urgência) para acessar nomes, emails, endereços e telefones ligados a milhares de IPs (protocolo de internet, um tipo de endereço que identifica cada dispositivo conectado a uma rede).
De posse dessas informações, escritórios de advocacia disparam notificações extrajudiciais oferecendo acordos com valores entre R$ 200 e R$ 3.000, como compensação pelo que afirmam ser uma infração.
Para entidades como o Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) e a Coalizão Direitos na Rede, trata-se de tipo de “pescaria” encabeçada pelo que consideram ser “copyright trolls”, que aplicam à defesa dos direitos autorais as mesmas táticas agressivas dos brucutus da internet.
Elas também recomendam que os consumidores não respondam às notificações e não paguem os valores requisitados. O rosto formal desses trolls são os escritórios de advocacia que atuam a favor das produtoras nas ações, e que rejeitam denominação.
“É lamentável, estão tentando confundir essas ações com instituto do copyright troll. Há total direito dos detentores [em cobrar compensação]”, afirma o advogado Márcio Gonçalves, do escritório que leva seu nome, responsável por milhares de notificações.
Joélcio Tonera, do escritório Guerra IP, também signatário de outras milhares de notificações e autor de uma ação contra a Telefônica Brasil, diz que apenas representa os interesses de quem detém os direitos sobre as produções.
“O posicionamento valorativo ou moral caberia a quem foi lesado. De qualquer modo, o nosso cliente disponibiliza de forma absolutamente legítima os arquivos de suas obras cinematográficas àqueles que são autorizados. A partir do momento em que há cópias, há uma infração”, afirma. “Com todo respeito ao importante trabalho do Idec, mas isso não é uma questão de direito do consumidor.”
No processo contra a Telefônica, Tonera representa a Pml Process Management Ltd., empresa com sede em Chipre.
O pedido afirma que a empresa identificou, a partir de tecnologia forense, que certos IPs teriam usado sites de torrents para fazer o download ilegal de filmes. O argumento é o mesmo de outras ações do tipo. A lista de produções que teriam sido baixadas inclui títulos como “Ava”, “Rambo: Até o Fim”, “Hellboy” e “Dupla Explosiva”.
O advogado não informa quantos usuários já tiveram seus dados revelados por decisão judicial –o número é protegido pela Lei Geral de Proteção de Dados, diz ele.
Mesmo nos processos em que não foi o autor, como os contra a Claro, o Guerra IP recebeu autorização para acessar os dados concedidos pela Justiça (o nome jurídico é o substabelecimento).
O processo mais recente inclui 66 mil IPs. Em outro, contra a Claro, 53 mil IPs foram identificados. A Vivo diz desconhecer a ação judicial. A Claro não comenta.
Para Luã Cruz, pesquisador do Programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec, não há dúvidas de que as ações judiciais e as notificações extrajudiciais sejam comportamentos trolls.
A solicitação dos dados não é ilegal, afirma, mas os métodos são questionáveis, pois não explicam a usuários ou Judiciário como foi feita a identificação e de que maneira os dados coletados estão sendo tratados.
Pedro Lana, pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e secretário do Instituto Observatório do Direito Autoral (Ioda), diz que as empresas que solicitam os dados não são transparentes quanto aos procedimentos para identificação dos IPs.
Para Lana, que integra a Coalizão Direitos na Rede, há indícios de que essa coleta viole a legislação de proteção de dados. Ele também acha o método compatível com a classificação como troll porque desvirtua a finalidade da lei de direitos autorais, que é o estímulo da criatividade, ao aplicá-la a ameaças de litigância.
O advogado Christian Perrone, do ITS (Instituto Tecnologia e Sociedade), diz que os trolls se aproveitam do medo do usuário de ter uma consequência mais grave ao fato de o download ter sido realizado.
No caso das notificações, ele recomenda buscar descobrir se os direitos são legítimos antes de qualquer resposta. “Mas há sempre uma grande probabilidade de ser só um jeito de receber um dinheiro rápido.”
A reportagem conversou com duas pessoas notificadas por um desses escritórios. Ambas pediram para não serem identificadas pois decidiram não responder às notificações.
As duas contam que, ao receber o email, acharam que era tentativa de golpe. Dias depois, a notificação chegou pelos Correios. Usuária notificada em março diz ter convicção de que não baixou o filme. O problema, afirma, é que a notificação não traz nenhuma outra informação que permita confirmar a acusação.
O advogado Márcio Gonçalves defende as notificações e afirma que o procedimento pretende conscientizar o usuário sobre o direito autoral. Segundo ele, há acordos que nem envolvem pagamentos.
“É tudo tratado caso a caso, mas quem decide ignorar corre o risco de ser alvo de uma ação individual”, afirma. Ele ingressou, por decisão das companhias que representa, com duas ações contra usuários.
Para o Idec, o usuário deve ter em mente que esses pedidos estão baseados em uma situação jurídica nova e que não há possibilidade de enquadramento como crime, ou seja, na esfera penal, pois não houve a intenção de lucrar com o download.
No âmbito cível, o órgão de defesa do consumidor considera que os valores são desproporcionais, gerando enriquecimento ilícito.
“Eles dizem que é para educar os usuários, mas o que a gente tem visto é que, como eles têm dados de muitos usuários, eles fazem uma pescaria com rede. A gente entende que as pessoas podem ignorar essas notificações, porque eles querem lucrar com essa brecha na legislação”, diz Cruz, do Idec.
DIREITOS AUTORAIS E TORRENTS
O que dizem os dois lados
O que dizem os advogados das empresas
Que a cobrança é legítima e garantida pela lei de direitos autorais no combate à pirataria
Quanto isso pode custar
A lei prevê indenização equivalente a 3.000 do custo do produto caso a transação tivesse sido formalizada; um filme que custe R$ 20 em um serviço on demand, por exemplo, poderia gerar uma indenização de R$ 60 mil
O que dizem os que discordam
As ferramentas que identificam os IPs não são seguras, pois o funcionamento delas é desconhecido; segundo o Partido Pirata, as empresas alegam segredo industrial para não prestar informações
Notificações sem critérios
Dizem também que pessoas que não usam serviços de torrents ou com pouca afinidade com a tecnologia recebem notificações de violação
Insegurança no tratamento dos dados
O Partido Pirata diz que o IP não é suficiente para determinar a localização de um usuário, pois os números são dinâmicos e um mesmo IP pode abranger área com dezenas de pessoas
Funcionamento dos torrents
Para o Partido Pirata, também falta clareza quanto ao que pode ser classificado como reprodução de conteúdo protegido;cada parte um torrent carrega uma quantidade muito pequena de informação, às vezes pequena demais para determinar com exatidão a qual arquivo ou obra se refere.