O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação civil pública pedindo o cancelamento das três outorgas de radiodifusão concedidas à Jovem Pan. A requisição se deve ao alinhamento da emissora à campanha de desinformação que se instalou no país ao longo de 2022 até o início deste ano, com veiculação sistemática, em sua programação, de conteúdos que atentaram contra o regime democrático. O MPF destaca que as condutas praticadas pela Jovem Pan violaram diretamente a Constituição e a legislação que trata do serviço público de transmissão em rádio e TV.
Além do cancelamento das outorgas de rádio, o MPF pede que a Jovem Pan seja condenada ao pagamento de R$ 13,4 milhões como indenização por danos morais coletivos. O valor corresponde a 10% dos ativos da emissora apresentados em seu último balanço. Também para reparar os prejuízos da programação à sociedade, o Ministério Público pleiteia que a Justiça Federal obrigue a Jovem Pan a veicular, ao menos 15 vezes por dia entre as 6h e as 21h durante quatro meses, mensagens com informações oficiais sobre a confiabilidade do processo eleitoral. As inserções devem ter de dois a três minutos de duração e trazer dados a serem reunidos pela União, também ré no processo.
A severidade das medidas pleiteadas se justifica pela gravidade da conduta da emissora. A Jovem Pan disseminou reiteradamente conteúdos que desacreditaram, sem provas, o processo eleitoral de 2022, atacaram autoridades e instituições da República, incitaram a desobediência a leis e decisões judiciais, defenderam a intervenção das Forças Armadas sobre os Poderes civis constituídos e incentivaram a população a subverter a ordem política e social.
Com as informações falsas e sem fundamento que veiculou de maneira insistente, a Jovem Pan contribuiu para que um enorme número de pessoas duvidasse da idoneidade do processo eleitoral ou tomasse ações diretas como as vistas após o anúncio do resultado da votação, especialmente o bloqueio de estradas em novembro passado e o ataque de vandalismo em Brasília no dia 8 de janeiro. As outorgas de rádio da emissora estão em operação em São Paulo e Brasília, mas a rede conta com mais de cem afiliadas que retransmitem o sinal a centenas de municípios em 19 estados, alcançando milhões de ouvintes.
Exemplos
Para embasar a ação, o MPF realizou uma análise criteriosa do vasto conteúdo produzido e transmitido pela Jovem Pan entre 1º de janeiro de 2022 e 8 de janeiro deste ano, com foco nos programas “Os Pingos nos Is”, “3 em 1”, “Morning Show” e “Linha de Frente”. A ação cita numerosos exemplos de discursos que extrapolam as liberdades de expressão e de radiodifusão e configuram manifestações ilícitas, feitas por mais de 20 comentaristas durante o período. Todas convergiram para a defesa das mesmas teses, que, por isso, podem ser identificadas com a linha editorial da emissora.
As falas que desinformavam sobre o sistema eletrônico de votação começaram a permear a programação muito antes do início oficial da campanha eleitoral. Desde os primeiros meses de 2022, comentaristas alegavam reiteradamente que as urnas não seriam seguras e sustentavam uma suposta impossibilidade de auditagem dos aparelhos e um alegado conluio entre autoridades para definir o resultado da eleição. Sem qualquer fundamento técnico ou conhecimento jurídico sobre a questão, os integrantes da emissora mantiveram a defesa dessa ideia até mesmo quando o próprio Ministério da Defesa produziu um relatório concluindo pela inexistência de falhas ou inconsistências nas urnas, em novembro.
Segundo os comentários veiculados na emissora, somente o sistema de voto impresso poderia garantir a lisura das eleições. As urnas eletrônicas, porém, são submetidas periodicamente a testes e auditorias que nunca indicaram brechas para fraudes. Ao manter sistematicamente as opiniões infundadas, a Jovem Pan induzia seus ouvintes a duvidarem da integridade das eleições daquele ano, com frases como “deixar tudo nas mãos do TSE, sem questionamento, é suicídio eleitoral”, “tudo já se configura, por si só, uma espécie de golpe brando” e “eu acredito que esse relatório [de novembro] não deslegitimou a eleição, mas também não avalizou o processo eleitoral”.
O MPF apurou ainda que, recorrentemente, as falas graves eram direcionadas ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), inclusive contra seus ministros. Os comentaristas chegaram a usar palavras como “entrave” e “câncer” para caracterizar as cortes e defendiam com frequência que o Senado abrisse processo de impeachment contra seus membros, especialmente Alexandre de Moraes. A partir disso, o presidente da casa, Rodrigo Pacheco, também passou a ser alvo das investidas e apontado como “omisso”, como se houvesse um conluio entre autoridades da República em desfavor da sociedade. Em dado momento, comentaristas da emissora acusaram, sem nenhuma prova, um ministro do STF de mandar instalar uma escuta ilegal na tornozeleira de um investigado, para ouvir clandestinamente suas conversas.
A gravidade desses discursos foi escalando ao longo do período. As acusações infundadas de omissão de autoridades e manipulação do processo eleitoral desaguaram na tese de que as Forças Armadas deveriam intervir sobre os Poderes da República. Comentaristas leigos e sem conhecimento jurídico trataram, com recorrência e como obviamente correta, uma interpretação altamente questionável da Constituição, defendendo que uma intervenção militar seria legítima naquele momento para “restabelecer a ordem” que vinham dizendo estar em risco. As opiniões sobre o tema transitaram por elogios à ditadura militar, defesa de atos violentos e alegada falta de autoridade do STF. “Se as Forças Armadas estiverem dispostas a agir, o que o STF decide é absolutamente irrelevante” e “se vocês [Forças Armadas] vão defender a pátria, e vai haver reação de vagabundo, ué, passa o cerol, pô! Vocês são treinados pra isso” são apenas alguns dos exemplos.
O discurso alinhado entre os comentaristas, em defesa de uma ruptura institucional, incluiu também várias manifestações incitando a desobediência, pela população, de ordens judiciais supostamente ilegais e até mesmo a insubordinação de policiais, para que deixassem de cumpri-las quando incumbidos disso. As teses defendidas na emissora procuravam ainda legitimar atos de grupos radicalizados que, após as eleições, pediam intervenção militar e outras inconstitucionalidades e propuseram até mesmo uma “guerra civil” como alternativa ao alegado impasse institucional. Um dos comentaristas chegou a dizer, logo após a conclusão do segundo turno, que “ou a gente aceita uma eleição sem transparência, sem legitimidade, sem confiança da população, ou a gente aceita tudo isso, e abaixa a cabeça, ou a gente vai ter guerra civil”, para concluir em seguida: “então que tenha guerra civil, pô!”.
O mesmo comentarista disse na ocasião: “As Forças Armadas estão conscientes do momento que estamos vivendo. Agora, elas só agem provocadas por um dos Poderes. Então, nesse ponto, o novo endereço, para o povo que quer se manifestar não é mais os quartéis, o novo endereço é a Praça dos Três Poderes”. Foi o que se viu em 8 de janeiro deste ano, quando vândalos deixaram o acampamento diante do Exército em Brasília e, acompanhados de outras pessoas que chegavam à capital federal de diversas regiões do país, marcharam em direção à praça e depredaram as sedes do STF, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto.
Naquele dia, a cobertura da emissora tratou com normalidade a chegada dos manifestantes ao local, elogiou o ato até então pacífico e aproveitou para tecer mais críticas ao Judiciário e ao processo eleitoral. Após o início dos ataques aos prédios, o discurso dos comentaristas passou a ser mais moderado, mas ainda assim com tentativa de legitimação das ações golpistas. Segundo um dos comentaristas, “o responsável por essa situação não vai ser encontrado entre os manifestantes. Os responsáveis por essa situação são exatamente os atores políticos que se ausentaram das providências que esses manifestantes em Brasília [e] em todas as unidades da federação têm se manifestado há vários dias”. Outras declarações na sequência endossaram essa tese.
“A cobertura feita pela emissora no dia 08/01/2023 é reveladora, porque passagens como as acima transcritas são representativas de discursos disseminados por pelo menos um ano, e que não arrefeceram totalmente nem mesmo quando o Brasil assistia ao mais grave evento da história da redemocratização”, ressaltaram os procuradores da República autores da ação do MPF, integrantes da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo.
Inconstitucional e ilegal
Embora a emissora mantenha a veiculação de sua programação também no YouTube e em um canal de TV por assinatura, a ação do MPF trata do cancelamento apenas das outorgas de rádio pelo fato de a radiodifusão constituir um serviço público, concedido ou permitido pela União a particulares interessados em explorá-lo. Tanto a Constituição quanto a legislação específica sobre o assunto trazem parâmetros para essa exploração, estabelecendo limites ao conteúdo veiculado por radiodifusão, com vista à preservação dos interesses da coletividade.
A Constituição fixa em seu artigo 221 que as empresas devem dar preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e respeitar os valores éticos e sociais da pessoa, entre os quais estão inclusos os direitos fundamentais dos cidadãos. O Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/1962) vai no mesmo sentido e detalha, no artigo 53, as ações que constituem abuso no exercício da liberdade de radiodifusão. Entre as condutas, estão várias das praticadas pela Jovem Pan, como incentivar a desobediência, veicular notícias falsas com perigo para a ordem pública, econômica e social e insuflar a rebeldia ou a indisciplina nas Forças Armadas. Todas podem motivar o fim das outorgas, conforme a legislação.
“Esta ação, portanto, não se volta contra discursos que legitimamente fazem parte ordinária dos dissensos políticos e ideológicos de sociedades plurais, mas sim busca a devida responsabilização de quem, praticando graves atos ilegais, abusou de outorgas de serviço público e desvirtuou os princípios e as finalidades sociais que lhes dão lastro”, frisaram os autores dos pedidos do MPF.
Além das condenações requeridas para a Jovem Pan, o MPF pede que a União seja obrigada a providenciar e fiscalizar a inserção das informações oficiais sobre o processo eleitoral na emissora. Mais que isso, o Ministério Público quer que a Justiça Federal estabeleça o dever da União de inspecionar de forma contínua e eventualmente punir outras detentoras de outorga de radiodifusão que, na qualidade formal de afiliadas ou não, venham a transmitir conteúdos produzidos pela Jovem Pan.
Por fim, para garantir a preservação das provas, o MPF requer que a emissora seja proibida de apagar conteúdos de seu canal no YouTube. Em relação ao Google, o Ministério Público pede que a Justiça determine à empresa a disponibilização, em nuvem, de um link contendo a íntegra de todos os vídeos que a Jovem Pan publicou na plataforma no período compreendido na ação, com organização em pastas e dados sobre o número de visualizações, já que o conteúdo que a emissora disponibiliza no YouTube é, via de regra, o mesmo veiculado em suas transmissões de rádio.
Recomendação
Além da ação civil pública, o MPF expediu uma recomendação à Controladoria-Geral da União (CGU) para que ela instaure um processo administrativo que pode impedir a Jovem Pan de celebrar contratos com a Administração Pública federal. O pedido se baseia no parecer nº 00001/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU, aprovado pela Advocacia-Geral da União logo após os ataques de 8 de janeiro e com força vinculante. A norma considera que empresas envolvidas em atos antidemocráticos devem ser consideradas inidôneas para contratar com o Poder Público.
Os atos praticados pela Jovem Pan, a princípio, são uma forma de envolvimento em episódios dessa natureza, por terem estimulado a desobediência da legislação e de decisões judiciais, a intervenção das Forças Armadas e movimentos de desordem pública. Por isso, o MPF recomenda que a CGU, em 30 dias, avalie o caso, à luz do parecer, e eventualmente abra um processo administrativo que pode levar à declaração de inidoneidade da emissora. Caso a CGU não acolha a recomendação, o tema poderá ser incluído como uma das pretensões da ação civil pública ajuizada.