SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 2012, pouco mais de 20 anos depois da criação da principal lei de incentivo à cultura no Brasil, o filósofo e diplomata carioca Sergio Paulo Rouanet deu uma entrevista de tom amargo à Folha sobre sua passagem pela administração pública.
Afirmou que seu período como secretário de Cultura no governo Fernando Collor, no qual implantou a lei que se tornou famosa com seu sobrenome, havia sido um “equívoco” e que o mecanismo era uma “página virada” para ele.
“O grande complexo de inferioridade do intelectual é o de se sentir inútil”, disse. “Quando um intelectual consegue fazer coisas úteis, e acho que consegui fazê-las, isso dá uma grande alegria. Me sinto muito feliz.”
Embora sempre resistisse a falar sobre a lei para a imprensa, o intelectual, que morreu neste domingo, aos 88 anos, sabia da relevância dela.
São escassas as boas lembranças deixadas pelos anos Collor. A homologação da Terra Indígena Yanomami, em 1992, é uma delas. Outra é a Lei de Incentivo à Cultura lançada por Rouanet, que assumiu a pasta depois da gestão desastrosa de Ipojuca Pontes.
A partir de então, o governo passou a autorizar empresas e pessoas físicas a descontar do Imposto de Renda valores repassados a iniciativas culturais, como produção de livros, preservação de patrimônios históricos e peças de teatro.
Certamente havia falhas no projeto, que se tornaram evidentes com o correr do tempo. A concentração de iniciativas em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro estava entre elas. Rouanet estava ciente da necessidade de aprimoramentos no mecanismo, tarefa que deveria ter sido levada adiante pelas gestões posteriores –não foi a contento.
Não se deve negar à lei, porém, o papel de ponto de partida positivo como estímulo financeiro para a realização de projetos artísticos, uma proeza naquelas circunstâncias.
Com a ascensão das novas direitas, sobretudo a partir de 2015, o mecanismo passou cada vez mais a ser visto como sinônimo de mamata. Com Bolsonaro no Planalto, a partir de 2019, Lei Rouanet ganhou a carga de palavrão entre os que não conheciam a gênese e os propósitos do projeto. Ou fingem não conhecê-las.
É uma lástima que Rouanet tenha morrido em uma época na qual seu nome é usado porcamente para alimentar o submundo da política. Ele nunca respondeu a essa turma. Ou, pensando bem, respondeu sim, mas quase sempre de modo indireto e discreto –para amigos, para colegas da Academia Brasileira de Letras, para leitores e para o público das suas conferências.
Uma produção intelectual entre as mais sofisticadas desse país nos últimos 70 anos foi –e é– sua resposta.
Formado em ciências jurídicas e sociais pela PUC-RJ, em 1955, mesmo ano em que estudou no Instituto Rio Branco, Rouanet teve carreira respeitável como diplomata. Começou como terceiro secretário no Ministério das Relações Exteriores, em 1957, e ao se aposentar, em 2000, colecionava funções de prestígio, como embaixador na Dinamarca.
João Cabral de Melo Neto honrou o Itamaraty, mas foi ainda maior como poeta. Rouanet também se saiu bem como diplomata, mas foi ainda maior como intelectual.
Seu trânsito por campos de conhecimento como a filosofia, a psicanálise, a história e as ciências sociais rendeu mais de 15 livros e um número sem fim de ensaios e artigos publicados em revistas especializadas e na grande imprensa.
Escreveu por décadas no Jornal do Brasil e contribuiu para o extinto caderno Mais!, da Folha, nos primeiros anos da década de 2000.
Entre os temas da sua predileção, estavam o iluminismo e a modernidade. Entre os pensadores, Walter Benjamin, Jurgen Habermas, Michel Foucault e, princi- palmente, Sigmund Freud.
Obras de Rouanet como “Édipo e o Anjo” (1981), “Mal Estar na Modernidade” (1993) e “Os Dez Amigos de Freud” (2003), esta última vencedora do Jabuti na categoria educação, psicologia e psicanálise, demonstram sua preocupação em traduzir o século 20 por meio dos seus movimentos universais e também das suas patologias.
Em “As Razões do Iluminismo” (1987),sugere um novo olhar para o conceito de razão, com base em Freud. Só assim, ele dizia, seria possível retomar as vertentes iluministas.
Rouanet também se ocupava da história e da cultura do Brasil em seus textos. Em “Riso e Melancolia”, detalhou aproximações da literatura de Machado de Assis com obras de autores como Denis Diderot e Laurence Sterne.
Escreveu algumas vezes na Folha sobre Euclides da Cunha. Em “Canudos Chega à Alemanha”, comentou um simpósio sobre o autor de “Os Sertões” em Berlim. No último parágrafo, escreveu: “Pensar é preciso, e Euclides da Cunha está ajudando os alemães a pensarem.”
Como filósofo e como gestor cultural, Rouanet ajudou o Brasil a pensar. Um dia, quando a estupidez da política do país for refreada, seu legado será reconhecido como merece.
O intelectual, que enfrentava a doença de Parkinson, deixa três filhos e a mulher, a socióloga Barbara Freitag.