Por Andréa Leonora – CNR-SC/ADI-SC/Central de Diários
Maria tem 11 anos e há pelo menos dois anos é trocada pelo próprio tio por bebida e droga. Já não considera estranho ter que prestar favores sexuais aos “amigos” do tio. Agora, ela mesma quer ganhar com isso e iniciou sua carreira na prostituição. Bebe, fuma, usa maquiagem e se veste como uma adulta. E nos olhos traz a dureza de quem já passou por muita coisa ruim.
Marcos tinha cinco anos quando recebeu feijão fervente no rosto, lançado pelo padrasto, que o odiava por não ser menina. Seu algoz já havia usado sexualmente todas as suas três irmãs mais velhas e começava a preparar a irmãzinha gêmea de Marcos para ser sua amante.
Zenaide tem hoje quase 40 anos. Aos 7 anos foi violentada pelo pai, situação que perdurou por pelo menos cinco anos. Saiu de casa, se prostituiu, virou moradora de rua e alcoólatra. Hoje consegue conviver com o pai, mas não com a mãe. “Ela nunca me protegeu e tentou me vender para um vizinho. Foi quando fugi de casa. Minha mãe não me tratava como filha, mas como uma rival.”
Os nomes usados nesses três casos não são reais, mas os fatos, sim. Ocorreram em épocas diferentes e em três cidades diferentes de Santa Catarina. Apenas um deles, o de Marcos, que chocou um município do Sul do estado, foi parar na delegacia. Os outros dois estão sob a lei do silêncio. Lei que tanto contribui para que mais e mais casos cruéis assim ocorram.
Romper o silêncio e incentivar a denúncia é o grande desafio do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) e do Fórum Catarinense pelo Fim da Violência e Exploração Sexual Infantojuvenil. Por isso, nesse 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, estão com uma campanha publicitária em andamento para divulgar o Disque 100, um canal de comunicação da sociedade civil com o poder público, que possibilita conhecer e avaliar a dimensão da violência contra crianças e adolescentes e o sistema de proteção, bem como orientar a elaboração de políticas públicas.
“O foco da nossa campanha desse ano está no número de denúncias que não são feitas. Sabemos que é maior o número de casos que não chegam ao nosso conhecimento frente aos que chegam”, reconheceu o coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude (CIJ), o promotor de Justiça Marcelo Wegner. Os motivos para que as denúncias não ocorram são vários: temor da vítima em relação ao agressor, vergonha, sentimento de culpa. “Esses são sentimentos da vítima. Mas o pior está mesmo na omissão da sociedade. O familiar, o vizinho, a professora. Pessoas que sabem, ou ao menos percebem algo estranho, e fingem não ver”, lamentou.
Em 2012, o Disque 100 recebeu 1.135 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes originadas em Santa Catarina. Isso equivale a 2,48% das denúncias do país. Em 2011, 1.013 casos ocorridos em cidades catarinenses chegaram ao serviço. De acordo com Wegner, o aumento de 12% do número de denúncias em Santa Catarina entre 2011 e 2012 não significa, necessariamente, aumento no número de casos, mas mudança de comportamento da sociedade, que passou a denunciar mais. A estimativa é de que 500 mil menores são vítimas da prostituição infantil no Brasil.
Fazendo as contas com base somente o número de ocorrências de 2012, a média é de mais de três casos por dia no estado. A estimativa de quem trabalha na área – promotores, conselheiros tutelares, delegados, assistentes sociais, psicólogos – é de que o número de denúncias é apenas a ponta de um iceberg que pode ser até 80% maior. “Temos aí uma cifra negra. É fundamental que as pessoas estejam atentas e se encorajem. Quem sofre abuso, mesmo que seja na mais tenra idade, jamais esquece. É um sofrimento que dura a vida toda.”
As causas para esse fenômeno, segundo estudos, são diversas. Podem ser culturais, psicopatologias (neste caso, perversão), réplica (o ofensor foi vítima na infância ou adolescência) e afrouxamento de valores éticos, mais observado na internet. As formas de exploração sexual infanto-juvenil também podem ser diferentes: com fim de lucro, internet, crimes contra a dignidade sexual (estupro) e tráfico de crianças e adolescentes para fins sexuais. Para se ter uma ideia da gravidade da situação, a CPI da Câmara dos Deputados que tratou do assunto concluiu que de 15% a 20% dos casos de tráfico de pessoas envolve crianças e adolescentes.
De acordo com o promotor, o MPSC vem trabalhando pela implantação de políticas públicas para atender crianças e adolescentes vítimas desse crime. A cada três meses, todo promotor de Justiça tem que fazer uma fiscalização nas entidades de acolhimento. “Infelizmente, ainda não temos uma condição ideal. O interessante seria que tivéssemos o acompanhamento de psicólogos e assistentes sociais. Isso não é possível em todos os casos, mas há um esforço para a realização de concursos com o objetivo de complementar o quadro com esses profissionais. Na questão das políticas públicas de Estado, existe, sim, uma série de deficiências, que se tenta atacar por etapas, por meio de programas envolvendo estados e municípios”, explicou Wegner.
Causa da sociedade
A campanha publicitária pelo fim da exploração sexual comercial infanto-juvenil foi ao ar nas emissoras de televisão e rádio na quarta-feira (15). É composta também por cartazes, folders, outdoors e anúncios em jornais. A exemplo de outras entidades, a Associação de Diários do Interior (ADI-SC) apoia a iniciativa.
Toda a campanha foi desenvolvida pela agência de publicidade D/Araújo Comunicação, de Florianópolis, cujo presidente, Daniel Andrade de Araújo, participou do lançamento, realizado na sede do MPSC. “Geralmente, nas campanhas publicitárias que a gente faz, a expectativa é pelo melhor resultado. Nesse caso, infelizmente, o melhor resultado é saber que crianças e adolescentes foram vítimas de abuso. A responsabilidade é de todos. É uma questão de cidadania. A nossa campanha reforça justamente isso, que a população precisa falar pela vítima.”
Esse é o terceiro ano consecutivo da campanha nos moldes atuais. Nas edições anteriores, a iniciativa foi integralmente financiada por parceiros da iniciativa privada. Na edição 2013, entretanto, o governo do Estado entrou com apoio financeiro. O secretário de Comunicação do Estado, Nelson Santiago, explicou que, por ser uma campanha de utilidade pública e de extrema importância do ponto de vista social, houve interesse do Executivo em ajudar. “Foi uma decisão tomada com base no resultado que a campanha pode alcançar. Diante do tamanho da causa e da possibilidade de prevenção, ou mesmo de denúncia de casos, o investimento que fizemos é pequeno”, avaliou.
A conselheira Claudia dos Santos Cruz, do Conselho Regional de Psicologia, lembrou que ainda que o maior número de casos conhecidos venham das camadas menos favorecidas da população, identificados nos espaços do sistema público, como centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), há muitas vítimas que aparecem também nos consultórios particulares dos psicólogos. “Esse tipo de violência tem dados alarmantes e ainda assim sabemos que ocorre subnotificação. E o impacto dessas ocorrências no sistema de saúde é muito significativo, pois invariavelmente resultam em transtornos médicos, psicológicos ou psiquiátricos. Por isso tentamos trabalhar com técnicas preventivas e dar visibilidade para a situação, a fim de ter melhores chances de acolher as vítimas.”
Por que 18 de maio?
Há exatamente 40 anos a menina Araceli Cabrera Sanches, de apenas oito anos, foi assassinada após ter sido sequestrada, espancada, torturada, drogada, violentada e morta. Os criminosos tentaram destruir o corpo da menina com ácido e o mantiveram escondido em um freezer por vários dias, até o lançarem fora. O crime aconteceu em 18 de maio de 1973, em Vitória (ES), e ficou conhecido como Caso Araceli. Em referência ao episódio, que envolvia famílias ricas da cidade e acabou sem condenados, a Lei Federal 9970/00 declarou 18 de maio como Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
O Fórum
O Fórum Catarinense pelo Fim da Exploração Sexual Infantojuvenil é um movimento social, responsável pela articulação entre os atores do Sistema de Garantias e pelo fomento de uma agenda pública de enfrentamento à exploração sexual infantojuvenil nos municípios catarinenses. O Fórum surgiu em 1998, na cidade de Chapecó, quando cerca de 120 pessoas de diversas regiões e entidades governamentais e não governamentais se reuniram para discutir a criação de uma entidade que fosse capaz de enfrentar, de forma organizada, os problemas da violência e da exploração sexual de crianças e adolescentes no Estado. Hoje a sede é em Lages. Saiba mais no site http://www.fimdaviolenciainfantil.com.br/
FALSO
1- Se quiserem, as crianças e adolescentes podem evitar a exploração.
2- Os exploradores-clientes são doentes e de idade avançada.
3- É seguro fazer sexo com meninos e meninas.
4- Apenas os pais devem ser responsabilizados pelo que acontece aos filhos.
5- As condições climáticas do país ou região no qual a pessoa mora ajudam a promover a exploração sexual comercial.
6- A exploração sexual comercial só acontece em lugares afastados.
7- Já que são muitos os casos conhecidos de exploração sexual comercial, as crianças e os adolescentes ganham muito dinheiro.
8- Não há como controlar a exploração sexual comercial.
9- Crianças e adolescentes buscam prostituição como forma de ganhar dinheiro.
VERDADEIRO
1- Só em alguns casos. Na maioria das vezes, encontramos pessoas vitimadas pela persuasão, ameaçadas com baixa autoestima e que sofrem todo tipo de intimidações por parte dos agressores.
2- O explorador pode ser de qualquer idade, sem necessariamente apresentar o quadro clínico psiquiátrico anormal. Em geral, são homens de diferentes níveis educacionais, sociais e econômicos.
3- As DST e a AIDS podem acontecer em qualquer faixa etária e estão mais presentes entre aqueles que praticam sexo sem o uso do preservativo.
4- Toda a sociedade é responsável. É tarefa de todos assegurar o desenvolvimento integral da criança e do adolescente, respeitando seus direitos.
5- O clima e a forma de se vestir não podem ser usados como argumento para promover ou aceitar a exploração de meninos e meninas.
6- Acontece também nos centros urbanos, onde há grande movimento de pessoas.
7- Também não é correto. Crianças e adolescentes são explorados. Os exploradores e os intermediários são os que lucram com esse tipo de violência.
8- O problema pode ser prevenido e tem como ser erradicado se forem aplicadas e cumpridas as leis que penalizam essa atividade ilícita.
9- Meninos e meninas nunca se prostituem por vontade própria. A palavra prostituição não se aplica a esses casos, já que as crianças e adolescentes – enredados pela prática criminosa de adultos – são vítimas da exploração sexual comercial.