Crônica: “Juiz, no dia do casamento meu marido me bateu”
A audiência era sobre o divórcio. Para a realização do depoimento das partes, Maria e o ex-marido, que alguns dias antes havia sido afastado de casa por decisão judicial por violência contra a esposa. Não havia mais discussão judicial sobre pensão alimentícia para os filhos, já adultos, que não moravam mais na casa da família. Não havia testemunhas. Apenas pendente a decisão sobre a partilha dos bens.
Estavam presentes na sala de audiências também o Promotor de Justiça, os advogados de Maria e do ex-marido, e uma estagiária do Fórum. Ao entrar na sala todos estavam aguardando, menos Maria. Chamei a mulher, uma senhora de aproximadamente 60 anos, para entrar comigo. Eu solicito à equipe que em casos sensíveis não deixem todos aguardando no mesmo ambiente antes do ato começar, de forma a evitar constrangimentos. Maria, dona de casa, moradora da zona rural, no interior de uma cidade atendida pelo fórum.
Cumprimentei todos, apresentei-me, e perguntei primeiro à Maria, ainda antes da audiência em si começar, se queria falar algo. Rapidamente, antes mesmo que eu completasse a frase, com voz firme, e olhar fixo para o ex companheiro disse:
– “Juiz, eu fui casada toda minha vida com esse sujeito aí! Foi meu único namorado e marido. Eu escolhi ele para ser meu companheiro porque me apaixonei por ele, mas se soubesse o que viria depois, nunca tinha aceitado o casamento. Minha vida sempre foi de muito sofrimento, vivi um inferno ao lado dele.”
Maria comentou que sofria muitos xingamentos, todos os dias. Era desrespeitada na frente de parentes e dos próprios filhos. Contou que quando o marido estava alcoolizado ficava ainda mais violento, quebrava as coisas na casa.
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-“Ele bebe todos os dias, sai direto do trabalho para o bar, e chega tarde em casa” disse com tristeza. “Com o tempo começou a controlar as roupas que eu usava, meu jeito de usar o cabelo, me proibiu de usar maquiagem, nunca me respeitou como mulher.”
“Ele nunca me permitiu procurar trabalho. Tinha ciúme de todas as pessoas próximas. Eu gostava muito de conversar com uma vizinha, mas ele já há muitos anos não permite que eu fale com ela. Nem quando ele está fora consigo mais, porque ela foi ameaçada, e agora não me atende. Me afastou dos parentes, de minhas irmãs, retirou meu celular que consegui comprar com muito sacrifício. Não posso mais assistir televisão em casa quando ele não está junto. Me proibiu de ir na igreja juiz. Eu não posso nem mais me confessar com o padre” disse desolada.
“Meus filhos não suportavam ver tanto desrespeito e violência em casa. Assim que puderam casaram e saíram para morar fora. Quando tentavam me ajudar e pediam para conversar com ele dizia que iria melhorar, que estava em uma fase ruim, mas tudo passaria, pedia desculpas. Mas no dia seguinte começava tudo novamente”. Maria contou também um fato que a marcou, quando preparou um jantar no dia que completavam 20 anos de casamento. Conseguiu escondido com a ajuda de uma prima comprar um porco para assar: “era a comida preferida dele”.
Limpou a casa, preparou a mesa e o esperou à noite para o jantar, no horário que haviam combinado. O marido não chegou na hora marcada e Maria acabou comendo sozinha. Depois de horas aguardar, foi dormir. Quando o companheiro chegou já de madrugada em casa, alcoolizado e proferindo xingamentos de toda espécie, tirou-a da cama, jogou toda a comida no meio do chão da sala, exigiu que Maria limpasse tudo e preparasse outro jantar. “Quando imaginava que o pior já havia passado e ele iria sossegar, levou-me para o quarto, arrancou minha roupa e me forçou a ter relações com ele”. “E assim foram várias outras vezes” contou sobre a violência sexual que também sofria.
Maria falava acelerado. Em um determinado momento começou a xingá-lo: “Esse vagabundo, pilantra, diabo” e seguiu em voz ainda mais alta, com outras palavras cada vez mais fortes.
Seu advogado tentou interrompê-la, mas Maria sequer o ouviu. Continuou a se dirigir com olhar fixo, dedo em riste apontado ao ex-companheiro, continuando a xingá-lo de uma forma nada comum nas audiências que fazemos.
Depois da longa fala respirou fundo e se acomodou na cadeira Perguntei a seguir ao homem ali presente que ouviu tudo sem quase se mover, se pretendia também falar algo, e com um movimento da cabeça respondeu negativamente. Nesse mesmo momento, Maria levantou-se e se dirigiu até a porta da sala de audiências. Quando já estava quase saindo a chamei: “Senhora, a audiência ainda não terminou. Ao contrário, está no começo. Vamos avaliar se há alguma possibilidade de acordo sobre a divisão dos bens, e em caso negativo tomaremos os depoimentos de vocês dois”, expliquei.
Maria ainda de pé, já ao lado da porta de saída respondeu: “Juiz, eu fui casada 35 anos com esse sujeito. Não houve um único dia que não fui vítima de desrespeito e violência dele. No dia do casamento meu marido me bateu, depois da festa. E nunca mais parou. Eu não quero depoimento nenhum, não quero nada desse processo. Eu não quero ficar com bem nenhum. Para mim, a audiência já terminou.” E completou: “Hoje foi a primeira vez em toda minha vida que falei o que penso sobre tudo, na frente dele, e não vou apanhar depois” saindo a seguir em passo acelerado pelo corredor do fórum.
O advogado correu atrás, quase não a alcançou, quando esta já descia as escadas em direção à porta de saída. Voltou pouco depois e reportou: “Excelência, não consegui conversar com ela mais. Estava decidida a ir embora”.
Combinamos acertar a divisão de bens com a participação dos advogados para aproveitar a presença no fórum. Haviam galinhas e porcos na propriedade, uma vaca leiteira, um trator, eletrodomésticos e os demais bens da casa. Também foi possível acertar a permanência dela na casa. Realizada a divisão tudo constou em ata, para que em outro momento o advogado conseguisse conversar com Maria ratificar o acordo, falar da importância desse acerto do patrimônio para que ela pudesse começar sua nova vida.
A violência doméstica é uma verdadeira pandemia. Não diferencia mulheres pela idade, classe social, zona rural ou urbana, com estudo ou sem. Mesmo países com alto grau de desenvolvimento socioeconômico e educacional, com baixos índices de corrupção e outras violências, apresentam cultura machista e de flagrante desrespeito com a mulher em estatística preocupante.
O processo judicial, seja na área da família (nos divórcios), ou na criminal, onde o agressor responde pelos seus atos (ou ao menos assim deveria ocorrer), tem pouco poder de mudança de uma cultura ainda altamente enraizada em toda a sociedade. Há pouca ou nenhuma política pública organizada e qualificada em todas as esferas de governo que repercuta em mudanças de conduta e comportamentos.
Não há um único dia no fórum em que não atendamos uma ou várias mulheres vítimas de violência e todo tipo de desrespeito. Muitas meninas de 13, 14 anos, vítimas de violência já no primeiro namoro. Procuramos fomentar a discussão do assunto continuamente com apoio da mídia local, também por meio de palestras públicas em escolas e comunidades. Organizamos projetos para trabalho do empoderamento da mulher vítima, e da conscientização contínua de homens que respondem processos judiciais por violência doméstica.
Essencialmente, priorizamos a criação de espaços de acolhimento e escuta, de proteção da mulher vítima. Ao final de 2021, nossas práticas consolidadas junto ao CEJUSC (Centro de Cidadania do Fórum) de União da Vitória, pela prática nominada “Rede de Ajuda” foram agraciadas com reconhecimento meritório do Conselho Nacional de Justiça.
O projeto “Rede de Ajuda” fundamentalmente possibilita que a mulher fale, a qualquer momento, expressando seus sentimentos, em ambiente seguro e reservado, permitindo inclusive que outras Marias não precisem aguardar 35 anos de relacionamento violento para conseguir desabafar e pedir/receber socorro.
*o nome aqui utilizado é fictício.
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