Tecnologia de Porto União ajuda a erradicar a fome na África
A luz do sol atravessando a fresta da janela indica que um novo dia está nascendo. A roupa é a mesma do dia anterior para poupar o uso da água sem necessidade. A mãe arruma um lenço de cabeça e faz a sua oração. Com as mãos entrelaçadas no peito ela pede por comida na mesa. O pai com as mãos calejadas apanha a enxada, sua fiel companheira de trabalho. Do cesto mediano que fica no quarto do casal está o menino de olhos cor do céu. Ele chora. Soluça. Volta a chorar. Ele está com fome. Sua face está miúda por conta da desnutrição. Sem muito pensar a família segue unida para mais um dia de trabalho em um das vilas da Zâmbia, que fica no Sul da África.
O desafio da agricultura africana não é relato de uma, mas sim de milhares de famílias. Dados de abril de 2021, do Programa Mundial de Alimentos (PMA) das Nações Unidas, revelam que o número de pessoas que passam fome no Chifre da África (também conhecido como Nordeste Africano) pode saltar de 14 para 20 milhões. É assim também na Zâmbia que desde 2020 e, segundo a Equipe Internacional de Resiliência e Ações Humanitárias da ActionAid, está enfrentando uma crise alimentar sem precedentes. Mais de dois milhões de pessoas foram afetadas e pelo menos 430 mil estão sofrendo grave insegurança alimentar. As famílias estão sobrevivendo ao reduzirem o número de refeições que comem por dia e isso está levando a altos níveis de desnutrição. Vale ressaltar que, apesar de seus imensos recursos naturais, contudo, a África é a região que apresenta a maior insegurança alimentar do mundo. Em torno de 226 milhões de pessoas, ou uma em cada cinco pessoas na África, padecem de insegurança alimentar crônica.
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) preocupada com este cenário vem garimpando parceiros pela mecanização sustentável da agricultura na África. Um exemplo de empreendedorismo social (que atua no combate à vulnerabilidade social de uma comunidade) vem de uma indústria instalada em Porto União, cidade catarinense que fica a aproximadamente 436 quilômetros da capital Florianópolis, distante cerca de 6.833 quilômetros da África.
A Indústria Mecânica Knapik Ltda., desde a década de 1960, foi reconhecida internacionalmente pela dedicação à Agricultura Familiar. As invenções que vieram da própria família se objetivam a incentivar um maior acesso dos pequenos agricultores à mecanização sustentável das propriedades, como máquinas que podem melhorar a vida do trabalhador rural. “Temos fotos dos maquinários que foram para a Zâmbia. A FAO participa junto do processo na propriedade verificando as condições do maquinário e a adaptação delas com a sua comunidade. Percebe-se que a FAO se preocupa muito com a questão de segurança alimentar e, quando descobrimos que eles tinham esse intuito nós estabelecemos um diálogo. A equipe chegou a vir na empresa aqui em Porto União para conversarmos e analisarmos a possibilidade de atendimento conforme a demanda deles. Foi aí que conseguimos fazer vendas boas e com margens de lucros interessantes. Vendemos máquinas que foram à África para ajudar a desenvolver a agricultura de subsistência e gerar uma segurança alimentar junto com a FAO. Porém, nós ainda não fomos até lá (na África) para vivenciar junto da comunidade tudo isso e sentir qual a real situação deles, mas sabemos que as nossas máquinas estão lá; assistimos vídeos com o maquinário que tende a ampliar o sucesso na agricultura e é isso que motiva o coração da gente”, disse o economista e um dos sócios da indústria, Gilberto Renato Knapik.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura é uma das agências da Organização das Nações Unidas, a que lidera os esforços para a erradicação da fome e o combate à pobreza. A parceria estabelecida com a empresa de Porto União busca vincular o uso de máquinas agrícolas à Agricultura de Conservação, que é um sistema de cultivo que promove o mínimo de perturbação do solo e o plantio de espécies vegetais complementares para melhorar a biodiversidade e os processos biológicos naturais.
Na África, os pequenos agricultores usam sua própria força muscular, como enxadas manuais em cerca de 65% da mão-de-obra total necessária para o preparo da terra. Já 25% de força vem da tração animal e 10% de máquinas movidas a motor. De acordo com o diretor-geral adjunto da FAO, Bukar Tijani, “as parcerias para a África será uma plataforma para reunir as partes interessadas do setor privado, grupos de agricultores, sociedade civil, ministérios da agricultura e além, para alcançar nossa visão do mundo do Fome Zero”.
A família Knapik apostou na iniciativa pois, para eles, a mecanização em toda a cadeia de valor dos alimentos, da produção e colheita ao manuseio, processamento e transporte, alivia o trabalho penoso e aumenta a produtividade agrícola, bem como a renda, fornecendo novos empregos, como os serviços de mecanização e reparos. A colaboração também visa promover a partilha de conhecimento sobre a mecanização agrícola sustentável e a agricultura de conservação.
A União Africana comprometeu-se a banir a mão da enxada até 2025.
Família Knapik: uma história de empreendedorismo
1960, o início de tudo no ramo metalmecânico.
Com o intuito de suprir as necessidades em sua propriedade agrícola, os irmãos Knapik criaram a precursora e inesquecível Micro Ceifadera Combinada para a colheita de arroz.
Na década seguinte, a máquina ganhou novos ajustes e foi transformada na primeira colheitadeira automotriz, colhendo arroz em Massaranduba (SC). “Focamos nas máquinas agrícolas para os pequenos agricultores, porque pense bem, a fabricação de máquinas agrícolas para o grande produtor já existem várias; nós ajudamos os pequenos produtores a melhorarem no seu segmento, sendo esta uma opção entre os sócios (neste caso eu emeus irmãos). Optamos por este público alvo”, compartilha Gilberto.
O empresário conta que as invenções vinham de toda a família, antes da utilização da capina química (procedimento que consiste na utilização de produtos químicos agrotóxicos com o objetivo de combate de plantas consideradas danosas aos interesses do homem), era comercializada a Grade de Arame de Aço, idealizada pela senhora Rosa Zipperer, avó dos atuais sócios.
Por sua vez, conta Gilberto, a cheia do Rio Iguaçu em 1983, que atingiu Porto União e as cidades vizinhas, prejudicou as atividades da empresa o que levou, na época, o proprietário José Knapik a voltar os seus esforços para o plantio da melancia e a prestação de serviços.
Mais tarde, em 1997, o Pulverizador Manual foi desenvolvido e reestruturou a empresa Knapik, porém com seus novos sócios, os filhos de José: José Paulo (56 anos), Inês Eneida (52 anos) e Gilberto Renato (47 anos).
Outro ponto relevante na empresa de Porto União é que a família trabalha unida. Além da irmandade entre os sócios, também fazem parte da equipe José Gustavo Knapik (29 anos), Daniel Knapik Alves de Lima (23 anos), Rejane Fátima Knapik (52 anos), Larissa Crisley de Freitas (26 anos) e Renato Straube Knapik (16 anos). “Sobre a nova geração é natural que nós gostaríamos que eles seguissem o nosso empreendimento, mas isso é uma questão de livre arbítrio deles. Porém, a única coisa que eu posso ensinar para o meu filho é o que eu sei, porque eu não vou conseguir ensinar o que eu não conheço […] Então, na empresa nós traçamos uma estratégia onde vamos ensinar para a nova geração o nosso trabalho, assim eles irão aprender e nós queremos que eles aprendam. Isso não abrimos mão. Porém, a profissão é escolha deles […]”, acrescenta Gilberto.
Um negócio familiar é a interação de dois sistemas separados, a família e o negócio, que estão conectados. As empresas familiares podem incluir diversos membros da família, tanto na parte administrativa quanto como acionistas e membros da diretoria. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que 90% das empresas no Brasil possuem perfil familiar. Com isso, elas chegam a representar cerca de 65% do Produto Interno Bruto (PIB) e são responsáveis por empregar 75% dos trabalhadores no país.
Gilberto aposta na nova geração como empresários de sucesso no futuro. Segundo ele, com relação a Knapik, os jovens participam e conhecem a ideologia da empresa desde o seu batizado. “A instalação da empresa é junto a casa do meu pai. Então os netos, ao virem à casa do avô, naturalmente passam pela fábrica e convivem com o local, do escritório ao almoxarifado, até a parte produtiva. No dia que eles não tem aula, por exemplo, eles ficam onde? Ficam ao lado dos pais e ganhando um certo conhecimento. Com certeza a nova geração agrega valor […] então não é a herança e nem patrimônio, é a emoção”, afirma Gilberto.
E-commerce, um divisor de águas para a empresa
Um estudo da NuvemCommerce, análise anual especializada do e-commerce brasileiro realizada pela Nuvemshop, plataforma de e-commerce líder na América Latina em sua maioria de pequenos e médios empreendedores, aponta que o brasileiro fechou o ano de 2021 com resultados positivos, mesmo com a retomada do comércio físico e o cenário econômico mais desafiador, repetindo o movimento iniciado no ano passado.
Em 2021, as pequenas e médias empresas faturaram mais de R$ 2 bilhões com as vendas online, valor 77% maior que o registrado no mesmo período do ano anterior (R$ 1,3 bilhão).
Para Gilberto o e-commerce foi um divisor de águas para a empresa. “Isso ocorreu lá pelos anos de 2012. Antes disso, nós apenas fazíamos alguns vídeos no Youtube, porém esses vídeos eram uma questão mais urbana porque o pessoal do interior ainda não tinha acesso. Foi então que começamos com os vídeos e fomos conversando com os recursos que tínhamos disponíveis, neste caso, orientações junto a Associação Comercial de Porto União e União da Vitória. Ganhamos um padrão de orientação para sabermos que lado era o nosso norte e, em 2012, após a internet chegar para os agricultores que assistiam aos nossos vídeos, eles começaram a manifestar interesse acessando a nossa loja virtual”, diz o empresário.
Segundo levantamento da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm) o setor de vendas on-line registrou um salto recorde em 2020, refletindo o aumento na demanda por conta da pandemia de coronavírus e também o maior número de empresas que decidiram entrar no comércio eletrônico. A associação estima que 20,2 milhões de consumidores realizaram pela primeira vez uma compra pela internet em 2020 e que 150 mil lojas passaram a vender também por meio das plataformas digitais.
Conforme a ABComm foram mais de 301 milhões de compras pela internet, com um valor médio de R$ 419. “A pandemia elevou o nosso faturamento. O produtor estava em casa e necessitava de uma ferramenta no comércio, porém em alguns momentos o comércio estava fechado por conta das restrições sanitárias. Foi então que os produtores nos procuravam. A internet, com certeza, é algo que veio para ficar. Tanto é que eu posso dizer que 98% das nossas vendas são provenientes da venda por e-commerce. Apresentamos ainda na loja virtual vídeos sobre como montar a máquina como um tutorial e estamos esperando para ver o que vem mais para frente (risos).”
Internacionalização
Por conta da sazonalidade no cenário agrícola brasileiro, a Mecânica Knapik oferece seus produtos por todo o País. “Em determinadas épocas vendemos mais máquinas no Norte do Brasil, em outras no Nordeste e no Sul. Internacionalmente falando a empresa exporta máquinas agrícolas para os pequenos produtores dos Estados Unidos. No País existem pequenas comunidades de pessoas estudadas e que estão com uma certa carga de trabalho, com estafa até emocional. Muitos relatam depressão e sem emoção para o trabalho e, por isso, estão migrando para a agricultura; eles querem começar a empreender. Por isso precisam de ferramentas de manuseio fácil para a nova finalidade”.
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Pelo caminho da exportação da empresa de Porto União aparecem países da Europa e a África – conforme a parceria firmada junto a FAO. “Temos vários focos, como por exemplo no setor de produção, investimento em novas ferramentas que tragam mais agilidade em processos produtivos e que tragam resultados mais eficientes na questão comercial e marketing. É gratificante que a Knapik se torne uma referência para os produtores familiares. Porém na África, junto com a FAO, estamos ganhando credibilidade”.
Por outro lado, a preocupação com o Meio Ambiente também é pauta na empresa e conceito de referência de seus compradores. “A empresa tem 25 anos de história e para ela conseguir as liberações operacionais foram várias normas seguidas junto com o município, estado e federal. Seguimos as normas ambientais e, dentro da empresa, trabalhamos com materiais produzidos e que acabamos modificando para trazer tecnologias novas e processos em que conseguimos gerar menos impactos ambientais, além de focarmos na reciclagem, pois o próprio material, as aparas, quando possível reutilizamos”.
Gilberto conta que a maioria das sobras de materiais na Mecânica são levadas à Joinville (SC) para uma possível recuperação e reutilização ainda em Porto União. “Cada passo em prol do Meio Ambiente é uma vitória. Pensamos até em ferramentas que possam apresentar sonoridade sem danos à população. Também há oito anos instalamos a energia solar fotovoltaica (que funciona por meio de placas solares que transformam a luz do sol diretamente em energia elétrica) com isso reduzimos em 70% a energia que é consumida na empresa”.
Segundo a Engenheira Ambiental e Mestre em Meio Ambiente Urbano e Industrial, Lisandra Cristina Kaminski, o termo sustentabilidade significa poupar, economizar recursos naturais pensando nas gerações futuras. Esse é o conceito clássico de sustentabilidade ou desenvolvimento sustentável. “Quando a gente fala em uma empresa ser sustentável estamos falando das que possuem um processo de gestão ambiental e que tem como prioridade poupar recursos naturais, ou seja, economizar ao máximo tudo aquilo que é natural; por exemplo, o reaproveitamento da água que ela utiliza ou matéria-prima possível de reciclar, de reutilizar e voltar ao ciclo produtivo”.
Sobre o futuro desse segmento, a Engenheira Ambiental acredita que a tendência é de que as empresas tenham uma atenção bem mais voltada à proteção ambiental. “Já percebemos isso nas últimas décadas sobre um crescimento nessa preocupação ambiental e também em uma maior fiscalização pelos órgãos ambientais, com leis mais restritivas, que tendem a colocar critérios mais específicos de proteção ambiental nas empresas. Fora que as empresas tem visto muitas vantagens em adotar práticas sustentáveis em seus processos porque hoje isso gera um marketing e muitas pessoas procuram produtos de empresas responsáveis com o meio ambiente. Muitos mercados também estão mais atentos a essa questão limitando a compra de empresas que realmente tem uma postura ambiental bem definida. A população hoje está mais atenta também, cobrando se a empresa está emitindo fumaça, ruídos, se a empresa está gerando um resíduo sem destino correto. A sociedade está fiscalizando as empresas ao seu redor para a qualidade de vida da população”, explica.
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