Crônica: “Vamos embora Juiz. Estamos com medo de morrer”
Eu já havia lido sobre o crime quando passava pela linha do tempo em uma rede social. Não costumo parar nas notícias policiais para além do que consta nos títulos das matérias, até porque atendemos muitas tragédias todos os dias no fórum. Lembro de ter visto algo sobre uma família que ficou amordaçada e amarrada, sob a mira de armas de fogo. As vítimas, um casal e a filha adolescente.
Poucos dias depois fui procurado no Cejusc por um jovem senhor, de nome Gustavo. Narrou administrar uma propriedade rural dos pais, na qual morava uma família há mais de dez anos, que lá cuidava de toda a produção, ainda explorava parte da área para agricultura própria. “Fomos assaltados na semana passada. Eu vou todos os dias para lá, mas o crime aconteceu à noite, quando já havia voltado para casa” me relatou bastante nervoso.
“A família que cuida da propriedade passou horas de terror. Foram agredidos e ameaçados com palavras pesadas, enquanto estavam imobilizados no chão da cozinha da casa, com armas miradas para suas cabeças. Nesse meio tempo foram levados tratores, maquinário agrícola, uma parte da produção que estava armazenada, dinheiro. A polícia está investigando. Nem tudo tem seguro, eu não sei ainda o que vou fazer”, disse desolada.
“Mas o pior de tudo doutor”, completou Gustavo, “que o casal e a filha estão muito abalados. A menina parou de ir à escola e os pais estão com medo de que os bandidos voltem. Já estão com as malas arrumadas para ir embora. Não querem nem levar a mudança. Mas eles não sabem, nem tem para onde ir” comentou.
Nós atendemos há muitos anos vítimas de crimes. Há projetos de cidadania em nosso fórum mais elaborados para vítimas de crimes sexuais e violência doméstica, por exemplo. Mas o atendimento e acolhimento por nosso centro de cidadania (CEJUSC) não faz nenhuma limitação para o tipo de crime. Basta nos procurar e a equipe multidisciplinar é imediatamente acionada.
“Podemos ouvi-los hoje mesmo, ou amanhã cedo. O dia e hora que preferirem. Consegue ajudar a trazê-los ao fórum? Precisamos busca-los? Com fica melhor?” perguntei. Gustavo prontamente respondeu: “doutor, eles não saem mais da propriedade. A mãe e a filha na verdade não saem mais nem para fora da porta de casa. Estão com muito medo. Não sei o que fazer para ajudá-los”.
“A equipe de Psicologia vai até eles então amanhã. Avise-os” pedi a Gustavo. Confirmei na agenda os compromissos do dia seguinte e emendei: “eu vou também até a casa deles”.
Era uma sexta-feira, dia ensolarado e quente, e segui acompanhado de uma Psicóloga, uma estagiária de Psicologia, um servidor do fórum, dois conselheiros tutelares, e uma professora da Educação, até o interior de um município vizinho de União da Vitória. Depois de um trajeto por rodovia, mais um extenso trecho em zona rural, estrada de chão. Chegando à propriedade era possível avistar a casa de madeira. Ao aproximar tudo fechado, portas e janelas.
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João foi quem abriu a porta, e trancou novamente tão logo entramos. A filha e sua esposa estavam sentadas junto à mesa da cozinha, cabeças baixas, mal nos cumprimentaram. A casa estava limpa e arrumada, e ao olhar para o corredor era possível avistar um quarto, com várias sacolas no chão, sobre a cama uma mala fechada. Antes que eu pudesse falar algo João disse em voz baixa, mas com bastante firmeza: “eu falei para Gustavo que vocês não precisavam vir. Vamos embora amanhã. Vamos para o norte do Paraná. Tenho um primo que mora lá e acho que conseguimos uma semana de estadia. Vou procurar trabalho e uma casa para ficar depois.”
Enquanto sua esposa Maria e a filha Isadora eram acolhidas em outros cômodos João me relatou voluntariamente os momentos de tensão que passaram. “Achei que nenhum de nós sairia vivo juiz. Depois que foram embora falaram que devíamos esperar até o amanhecer para chamar alguém. Ficamos amarrados, eles comeram o jantar que minha esposa havia preparado. Falavam toda hora que iriam atirar em quem olhasse para eles.”
“Eu passo as noites acordado prestando atenção se não tem nenhum movimento diferente. Eles prometeram voltar. Minha mulher e minha filha só conseguem dormir depois de tomar remédio” contou João, que também passou pelo acolhimento psicológico a seguir.
Quando já estávamos reunidos todos na mesa da cozinha contei para eles os relatos que havia recebido da Polícia Civil de como estava a investigação, também sobre o trabalho da Polícia Militar que preparou rondas na região, passamos os contatos diretos para chamar mais rapidamente ajuda se houvesse algo suspeito, informei que Isadora estava autorizada pela escola a fazer as tarefas em casa por quanto tempo entendesse necessário (havíamos trazido o material encaminhado pelo colégio estadual para ela). Pedi que repensassem a decisão de ir embora, pois deixariam o trabalho, a casa, e todas as suas referências para trás. Mas que também apoiaríamos e continuaríamos acompanhado a família caso resolvessem mesmo seguir adiante. Um pouco mais calma após o acolhimento Maria fez questão de passar um café antes que fôssemos embora.
No dia seguinte, quando o expediente iniciava recebi mensagem de Gustavo: “Doutor, não sei o que falaram ontem com a família, mas hoje cedo João me avisou desfizeram as malas, e vão avaliar melhor o que fazer”.
Na semana seguinte nova mensagem de agradecimento, quando completou: “a polícia está dando todo o suporte. Estão passando todo dia lá na casa para conversar com eles”. Naquela mesma semana, a Delegacia de Polícia Civil de União da Vitória, prendeu receptadores que compraram parte dos bens roubados.
No atendimento seguinte da família, duas semanas após, João pediu para ir ao fórum. Isadora comentou que voltaria a frequentar a escola. Dois meses depois em uma estrada rural no norte pioneiro do Estado bandidos fortemente armados reagiram e trocaram tiros após abordagem da Polícia Militar, quando acabaram mortos. Ao me relatar o ocorrido o Delegado confirmou que era a mesma quadrilha que havia assaltado a propriedade.
E como tudo começou? Como foi o primeiro atendimento de vítima em nosso fórum? Muitos anos antes, presidia uma audiência de um assalto em um posto de combustível. Um adolescente estava entre os envolvidos, presos logo após o roubo. A primeira testemunha a ser ouvida era um frentista que trabalhava na hora do crime.
Marcos, um senhor de origem alemã, corpulento, pele e cabelos claros. Ao iniciar a audiência mal começou a narrar seu rosto ficou avermelhado. Era possível notar o suor enquanto falava: “Eu sempre trabalhei à noite, mas nunca esperei passar por isso. Os três bandidos estavam com revólver na mão. Um deles colocou a arma na minha cabeça, enquanto os outros dois pegavam o dinheiro do caixa do posto de combustível. Tive que entregar meu celular também.”
Ao terminar seu relato perguntei se havia algo mais a dizer, quando já em lágrimas, Marcos disse soluçando com dificuldade: “eu não aguento mais juiz. Eu não consigo trabalhar. Cada carro que entra no posto eu acho que vai ser o próximo assalto. Eu já tinha ansiedade e tomava remédio antes, mas tudo piorou agora. Fui ao posto de saúde ontem para pegar outra caixa, mas precisa receita, e só consegui consulta para o mês que vem. Sem remédio eu não consigo dormir”.
Antes que eu pudesse falar algo Marcos completou: “falei para minha esposa como estou me sentindo, ela brigou comigo, disse para eu parar de frescura. Contei também para minha mãe que falou que se continuar assim vou perder meu casamento. Como estou sem meu celular, pedi um adiantamento para meu chefe para comprar outro, mas ele falou que com o prejuízo do assalto não vai conseguir ajudar. Quando pedi para mudar de turno fui ameaçado de demissão.”
Terminado seu depoimento pedi para o setor de Psicologia fazer seu acolhimento psicológico (que atualmente é ofertado antes mesmo das audiências, muitas vezes tão logo o processo chega até nós). Enquanto Marcos era atendido conseguimos um celular para emprestar a ele até que conseguisse comprar um novo. Com o encaminhamento do relatório de entrevista para a saúde do município sua consulta foi antecipada para o mesmo dia da audiência, quando já conseguiu também pegar a receita de sua medicação.
Foi o primeiro atendimento de vítima que fizemos nesse formato. Atualmente além do acolhimento psicológico inicial, o acompanhamento segue adiante pelo tempo que for necessário, até que as próprias vítimas nos repassem que tudo está voltando ao normal, na medida do possível, em suas vidas.
Sempre é possível fazer muito mais que as audiências e o caminhar dos processos.*os nomes aqui utilizados são fictícios.
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