Você pode ser uma vítima de violência doméstica

Era o fim de mais uma noite, e Suelen* e sua filha dormiam tranquilas, sem saber que logo o mal viria acabar com seu sono. Não demorou muito para que a pequena acordasse chorando, despertando a mulher, que se deparou com o cano de uma pistola apontada para ela, pronta para ser disparada. Suelen gritou, e conseguiu ser salva do que seria mais um feminicídio para as estatísticas do país.

“Até agora fico lembrando da cena e só esperando o barulho do disparo da arma”, contou em um relato à nossa reportagem. Naquele momento, Suelen estava separada de seu agressor há quase um ano, e tinha ingressa do em um novo relacionamento, despertando ainda mais a ira de seu ex-marido. Nesta altura, a mulher já havia saído da cidade em que morava e vindo para União da Vitória ficar próxima de sua família. Infelizmente, a mudança de ares não impediu que o agressor tentasse contra a vida da mulher que dizia amar.

Você pode ser uma vítima de violência doméstica

O atentado contra a vida de Suelen, contudo, foi apenas o capítulo mais cruel de uma história de agressões que começaram muito antes, reproduzindo a maioria dos casos de violência doméstica. O feminicídio, na maioria das vezes, não acontece a partir de um ato isolado de ira, ele é fruto de uma progressão de ataques, tanto físicos quanto morais e psicológicos.

“[A agressão] estava nas pequenas coisas, [mas eu] achava normal. Ele sempre me mantinha por perto, eu não chegava a perceber que a minha relação não era tão saudável quanto eu imaginava que era. Ele não me proibia das coisas, mas sempre estava na minha cabeça falando coisas que me mantinham sempre ali, próximo”, aponta Suelen.

A mulher relembra algumas situações que passavam despercebidas, mas que hoje entende que já faziam parte de um ciclo de agressões, como a vez em que seu ex-marido disse que não queria mais que Suelen deixasse sua xícara em cima da pia da cozinha, ou o objeto iria para o lixo. Ou ainda a vez em que, cansada, optou por não guardar a louça que havia sido usada no jantar e na manhã seguinte, quando saía para trabalhar, encontrou sua bolsa dentro do armário em que deveriam estar as panelas que não quis secar.

“Ele falou ‘viu, você não quis se abaixar para guardar as panelas, teve que abaixar para pegar a tua bolsa’. São coisas que [parecem] bobeira, só que já estavam aí esses sinais que eu não percebia. Eu não conseguia perceber essas coisas porque eu talvez não comparava com outros relacionamentos, não tinha uma ideia de como era uma relacionamento saudável. Eu sempre ficava numa situação de que eu sempre queria agradar ele, com medo de que eu fizesse alguma coisa que ele me reprovasse. Sempre com aquele receio, pisando em ovos, dando explicação sobre tudo. Não que ele me obrigasse a dar satisfação, só que ele me fazia sentir como se eu tivesse que dar alguma explicação, uma coisa de submissão. Então eu acabava sempre relatando tudo, ele tinha o controle inteiro da minha vida”.

Assim como Suelen, 18,6% das mulheres brasileiras relataram ter sido vítimas de insulto, humilhação ou xingamento, entre 2020 e 2021, sendo essa a maior manifestação de violência citada na 3ª edição do relatório Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Instituto Datafolha. Segundo o estudo, mulheres com idade entre 16 e 24 anos foram as que mais relataram ter passado por alguma violência. O relatório, contudo, aponta que o fato pode ser resultado de um maior entendimento por parte dos mais jovens sobre os tipos de violência.

mulheres com idade entre 16 e 24 anos foram as que mais relataram ter passado por alguma violência.


Violência nem sempre deixa marcas na pele

De acordo com o Instituto Maria da Penha, existem cinco tipos de violência: a física, a sexual, a patrimonial, a psicológica e a moral. As duas últimas são, talvez, as mais difíceis de serem percebidas, tanto por terceiros quanto pelas próprias vítimas, pois são agressões que não deixam provas físicas. As agressões sofridas por Suelen eram disfarçadas de opiniões, como a recusa de seu ex em apreciar o novo corte de cabelo da companheira, ou a falta de apoio quando a mulher começou em um novo emprego.

Com o passar do tempo Suelen percebeu as agressões se acumularem em pilhas de maus tratos que soterraram sua autoestima. As palavras ditas por aquele que deveria ser seu parceiro só fizeram com que Suelen sentisse que não possuía nenhuma qualidade. Desvalorizada dentro de casa, não percebia que podia atrair atenções positivas. Até que percebeu.

“Um dia eu estava indo para a academia, pois depois que tive minha filha fiquei com um problema nas costas, e na fisioterapia me indicaram fazer alguma atividade para fortalecimento, e quando eu estava indo atravessar uma avenida, um carro parou quase causando um acidente. Foi parar para eu passar e eu pensei ‘nossa, será que eu posso despertar interesse em alguma pessoa?’ Foi tão gostoso ver que alguém poderia olhar para mim, porque em oito anos de casada na época, eu me sentia anulada. Por que com as palavras, que talvez não possuíam maldade no meu ver [naquela época], ele estava me minando, me fazendo sentir uma pessoa sem nenhum tipo de qualidade. Não me sentia bonita, não me sentia nova, ele me apagou totalmente, era totalmente anulada. E aquele dia me fez pensar, foi um start assim. Era uma sensação de um passarinho na gaiola que nunca voou, que não sabia o que era a vida lá fora, sempre vivendo para ele, sempre vivendo para a casa”.

O agressor também não permitia que Suelen tivesse amigos, e tentava até mesmo proibi-la de manter contato com sua família. Tentou inclusive colocá-la contra sua própria mãe. Essa é, segundo o Instituto Maria da Penha, uma demonstração clara de violência psicológica, em que o agressor ameaça, constrange, humilha, manipula, isola e vigia a vítima.


Dando fim ao relacionamento

Suelen relata que, percebendo que não era feliz em seu relacionamento, foi atrás de seu grito de liberdade. No começo, tentou melhorar seu relacionamento com conversas, apontando o que estava errado, mas o agressor não via problema em suas atitudes. Dizia que Suelen era ingrata e que “reclamava de boca cheia”. Não conseguindo entrar em um acordo com o parceiro e sentindo que estava sozinha, Suelen começou a pensar que a única saída era tentar contra a própria vida. Assustada com os próprios pensamentos, buscou ajuda psicológica e começou a fazer terapia.

O tratamento psicológico foi, nas palavras de Suelen, essencial para que conseguisse recuperar sua autoestima. Em uma das sessões, foi indagada pela terapeuta sobre as atividades que gostava de realizar. Com a voz embargada, Suelen relatou que foi naquele instante que percebeu o quanto seu agressor a havia manipulado. “Me dei conta de que eu não sabia mais quem eu era, o que eu gostava de fazer, quais eram os meus prazeres, e isso é muito doído. Eu me anulei tanto que eu nem sabia mais o que eu queria para a minha vida. Só vivia para o casamento”.

Pensando em sua saúde mental, Suelen tomou a decisão de sair de casa. Não foi uma escolha fácil, mas quando se afastou de seu agressor, conseguiu perceber que seus medos eram reais, e não apenas coisas de sua cabeça. Contudo, seu agressor não aceitou a separação, e dobrou a aposta, aumentando o nível de violências. “A partir do momento em que ele viu que não tinha mais o controle sobre a minha vida, ele mostrou aquela pessoa que sempre estava lá, só que eu nunca tinha cutucado para ver”.

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O ex de Suelen não aceitava cuidar da filha do casal pois, dessa forma, a mulher não poderia sair de sua nova casa, nem mesmo para trabalhar. O agressor também começou a vigiar e seguir Suelen. Sabia de todos os passos da ex-companheira. Percebendo que não teria apoio do ex-marido para cuidar da filha, Suelen decidiu vir para União da Vitória, sua cidade natal, para estar perto de seus familiares.

Com a rede de apoio formada por seus parentes, em pouco tempo Suelen conseguiu se restabelecer na cidade. Contrariado por perceber que a ex conseguiria prosperar longe de suas rédeas, o agressor, segundo Suelen, tentou incendiar a casa em que a mulher havia se estabelecido. “Tive que sair de lá porque ninguém me queria mais onde eu morava, era como se fossem vários apartamentinhos, não me queriam mais lá por medo de que acontecesse mais alguma coisa e todos acabassem se prejudicando. Só por Deus que acabou não pegando fogo, que acabou estourando o cano da câmara fria do restaurante que ficava lá embaixo e a água do cano acabou apagando o fogo, senão teria acontecido uma tragédia. Eu não posso provar que foi ele, as pessoas não denunciaram, não fizeram nada por medo de represálias”.

Suelen relata que, após o ocorrido, começou a ser ameaçada pelo ex para que não prestasse queixas. O agressor dizia que, se a ex optasse por registrar um Boletim de Ocorrência contra ele, tiraria a própria vida para não conviver com a vergonha de precisar ir à uma delegacia prestar esclarecimentos. “Naquele dia ele ficou o dia inteiro me pressionando, falando que ia esperar eu mandar o boletim de ocorrência. Eu senti como se eu estivesse com uma vida nas minhas mãos, aonde se eu falasse da minha suspeita ele iria tentar se matar e eu achava que eu não queria carregar esse peso nas minhas costas”.

Por algum tempo, essa foi a tática utilizada pelo agressor: ameaçar tentar contra a própria vida como forma de coagir Suelen. Até mesmo os familiares do homem começaram a atestar que ele estava sofrendo com o término, e que por conta das decisões de Suelen a vida do ex havia sido destruída. “A questão dele falar isso e mostrar que ele estava mal pegava muito no meu psicológico porque eu pensava que eu não queria carregar uma pessoa que vai tirar a sua vida. Eu estava me sentindo responsável por isso. Nessa eu tentei me reaproximar para ajudar e nessa tentativa de reaproximação eu via que eu me sentia sufocada novamente. E quando eu explicava para ele que aquilo estava me fazendo mal ele falava que estava tudo bem, que eu não precisava de ajuda, mas quando eu tentava me afastar ele falava ‘vamos fazer de conta que o que você me falou não existiu, que você não me pediu isso’, que ele precisava de mim porque sem mim ele não teria mais vida e ficava no meu psicológico jogando para mim e eu ficava muito mal por conta disso”.

Mais uma vez a terapia auxiliou Suelen, dessa vez para fazê-la entender que as ações de seu ex não eram sua responsabilidade. Vendo que suas falas não abalavam mais a ex, o agressor partiu para novas tentativas de machucar a mulher. Por esse motivo, Suelen conseguiu uma medida restritiva contra seu ex-parceiro, e agora conta com o Botão do Pânico Paranaense, uma ferramenta do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), por meio da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (CEVID), das Secretarias Estaduais da Segurança Pública e Administração Penitenciária (SESP) e da Justiça, Família e Trabalho (SEFUF) e da Companhia de Tecnologia da Informação e Comunicação do Paraná (Celepar).

A ferramenta está disponível no aplicativo 190 da Polícia Militar do Paraná (PMPR), e permite que a vítima, ao se sentir ameaçada, acione o Botão, que automaticamente detecta a posição geográfica da usuária e grava 60 segundos de áudio ambiente onde está o celular. O Botão também aciona automaticamente a Polícia Militar, que deve enviar ao resgate a viatura mais próxima à localização da vítima.

A Polícia Militar de Santa Catarina (PMSC) oferece às catarinenses uma ferramenta semelhante à existente no Paraná. Além disso, as vítimas de violência, no estado, recebem acompanhamento da Rede Catarina de Proteção à Mulher, uma iniciativa da PMSC que tem como objetivo proteger e orientar mulheres vítimas de violência. “O Botão do Pânico funciona para mulheres que já têm uma medida protetiva. Nós da Rede Catarina recebemos em nosso sistema essa medida protetiva, entramos em contato com a vítima, explicamos o nosso trabalho e marcamos uma visita. Essa visita pode ser feita tanto na casa da vítima ou ela pode também ir até o quartel da Polícia Militar de Porto União, em que temos uma sala preparada especialmente para o atendimento dessas vítimas. A gente conversa com elas para tirar dúvidas, prestar atendimento ou encaminhar ela para algum tipo de atendimento que ela precise, passar alguma informação que ela às vezes não teve naquela correria no registro do Boletim de Ocorrência às vezes passa alguma coisa despercebido e a gente está ali reforçando todas as informações para ela”, explica a Soldado Madleine Ghidini, membro da Rede Catarina em Porto União.

Cabe à equipe, ainda, a fiscalização do cumprimento da medida restritiva. Atualmente, descumprimento em flagrante, o infrator é preso na hora. Do contrário, é confeccionado um Boletim de Ocorrência que é encaminhado ao judiciário para solicitar a prisão. “A gente fiscaliza, a gente orienta a vítima sobre quais são as ações que o agressor possa fazer que vai caracterizar o descumprimento e que ela possa acionar o Botão do Pânico. (…) Numa situação de emergência em que ela ativa esse Botão do Pânico ele vai gerar uma ocorrência diretamente na central de emergência do 190, onde o Copom (Centro de Operações da Polícia Militar) vai disponibilizar uma guarnição que esteja mais próxima para fazer o atendimento da vítima porque vai saber que se trata daquela pessoa e se trata de um descumprimento de uma medida protetiva, à vítima não precisa ficar explicando o que está acontecendo ou onde ela está”, completa Madleine.


Convivendo com o Medo da Violência

O fato citado no início deste texto foi a última vez que o agressor tentou contra a vida de Suelen. Meses após o ocorrido, ela ainda convive com o medo de entrar para as estatísticas. “Eu não me sinto segura, eu sei que ele ainda tenta contra a minha vida, que ele comenta isso, que ele tem alguns tipos de surto, desequilíbrio, eu não sei, ele não consegue aceitar que acabou, é como se fosse uma obsessão. Já tive situações em que ele rondou a minha casa, então ainda não me sinto segura. Espero que um dia isso acabe”, comenta.

No Brasil, segundo o relatório Violência Contra a Mulher em 2021, também do FBSP,1.319 mulheres perderam a vida por conta de um feminicídio no ano passado. Foram 32 vítimas a menos que em 2022. Mesmo assim, a média nacional é de um feminicídio a cada sete horas. No Paraná, foram 75 vítimas entre janeiro e dezembro de 2021. Em Santa Catarina foram 55.

Já o número de estupros e estupro de vulneráveis voltou a crescer em 2021. No ano passado foram registrados 56.098 Boletins de Ocorrência a respeito de estupros contra meninas e mulheres, um aumento de 3,7% em relação com 2020. Em Números absolutos, o Paraná foi o segundo estado com maior número de registros do crime: foram 5.025 casos, contra 10.644 de São Paulo, o estado que lidera o ranking. Os três estados do sul aparecem entre os seis estados com maior número de estupros. O Rio Grande do Sul, com 3.469 casos, e Santa Catarina, com 3.298 aparecem na quinta e sexta posição, respectivamente. Completam a lista o Rio de Janeiro, com 4.432 ocorrências, e Minas Gerais, com 3.889.


Conversar é importante

A membro da central de atendimento das promotorias de União da Vitória, Angélica Cardoso de Lima, comentou em entrevista à CBN Vale do Iguaçu sobre a importância de se debater o tema da violência doméstica, inclusive com homens, para que estes possam prestar atenção nas suas ações.

“É importante os homens estarem ligados a isso, conversarem com seus pares, desmistificar tanta coisa que também estão ligadas a eles. Trabalhando a questão da equidade porque nós somos iguais e temos que ser tratadas de formas iguais. Aquele termo do ‘ajuda em casa’ tem que ser anulado completamente, fazemos juntos porque a família é nossa, a casa é nossa. Mas mais do que ele estar ali do lado, trazendo o protagonismo da sua mulher como participante da sua casa é também ele estar ao lado de um amigo que às vezes ele nunca imaginou que também faz a violência e falar ‘opa cara, as coisas não são bem assim’, então a importância de falar esse problema não é meu, esse problema é nosso e combater a violência doméstica é essencial do lado do homem. Quantos agressores fazem a violência sem saber que é violência?”

Conversar com pessoas de confiança, seja um familiar, um amigo, ou um profissional. Para Suelen, ninguém pode ser ajudado se não pedir ajuda. “Foi o que eu fiz. Eu poderia estar lá depressiva, pensando ainda em suicídio, e achando que eu era o problema. Eu tive forças, coragem e fé em Deus para saber que eu não merecia aquilo, que eu merecia coisa melhor, que eu merecia ser feliz, e que eu ainda podia buscar isso. Espero que você que esteja lendo e que passa por situações parecidas se permita olhar para você e se estiver em uma situação assim peça ajuda, vá em busca do que te faz bem, que vai te fazer feliz, não se permita que alguém tente roubar a tua alegria, roubar a tua autoestima, não se permita”.

*Nome fictício.

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