“Descuido”: Morador de Porto União revela como ficou cego com grave glaucoma
Os pássaros que se empoleiram nas araucárias do quintal encantavam as vistas de Ciro Roberto Alves de Lima, 63 anos, morador do Vice King, em Porto União. Se antes havia contemplação do canto único e das cores cintilantes de penas, naquele pôr-do-sol marcante do Vale do Iguaçu, hoje, resta-lhe, apenas, ouvi-las, ou exercer um esforço com ajuda de terceiros para, ao menos, ver suas sombras entre os galhos. “Sempre peço para alguém gravar elas nas árvores, para poder tentar assistir pela TV, mais de perto”, revela o morador que tem, apenas, 4% da visão. Acometido por um grave glaucoma, doença que degenera os nervos ópticos causando cegueira progressiva e irreversível, Ciro revela que é a vivacidade da natureza que mais sente falta de enxergar.
Foto: Herison Schorr
Tudo começou com um acidente nas vistas, em 1995. Ainda jovem, Ciro lembra que foi soldar uma trave de futebol e não usou a proteção necessária para proteger seus olhos das faíscas. Ao sentir que acabou ferindo-as, buscou por um oftalmologista que identificou outro e mais grave problema em sua visão: o início de um glaucoma. Como tratamento, foi receitado o uso de colírios, mas eram necessários cuidados mais expressivos para conter o avanço da doença, algo que Ciro lamenta não ter feito. Identificou com o passar dos anos que as vistas foram se embaçando, escurecendo, e duas cirurgias foram realizadas em 2005, mas o tempo crucial para conter a doença havia sido ultrapassado. “Eles passaram a dizer que eu perdi minha visão por besteira, descuido, pois tinha tratamento”, lamentou.
Hoje, aposentado e proprietário de um comércio em seu bairro, Ciro comenta que trabalhava como motorista de grandes empresas em São Paulo e teve que adequar sua rotina com a perda gradativa da visão, tornando-se dependente do apoio de amigos e familiares. “É muito triste, às vezes, você querer enxergar alguma coisa, você querer ler; eu lia muito”, emocionou-se ao recordar dos gibis que devorava na infância, com a ajuda da mãe. Quando perguntado se a doença abateu seu emocional, o santista que assistiu a ascensão do craque Pelé pela TV, e que, hoje, tem o rádio como fiel companheiro de jogos, é enfático: “Nunca fui de me entregar. Eu saio, vou em barzinho com amigos; meus amigos se dedicam muito a me levar nos lugares, a sair comigo”, agradeceu o apoio.
Cegueira por gerações
Dois tios da família materna de Ciro ficaram cegos. Mas, naquela época, quando não se havia recursos médicos para compreender o funcionamento ocular, o surgimento gradativo da cegueira na vida dos antepassados foi justificada por outros motivos aparentes. “Minha mãe contava que eles foram picados por cobras enquanto trabalhavam na roça, e outros bichos peçonhentos. As pessoas achavam que a cegueira era disso”, comentou Ciro.
Mas a manifestação da doença foi levantando suspeitas por outros fatores, à medida que mais irmãos ficaram cegos, tendo a diabetes como um fator potencializador para a perda da visão. Quando a doença se manifestou na mãe da família, ela optou por fazer uma cirurgia, ainda no início da década de 90, em Joinville, uma decisão que salvou a visão dela até os últimos dias de sua vida, lembrou o filho. Atualmente, seus sobrinhos, por orientação dos médicos, fazem exames periódicos para identificar possíveis manifestações do glaucoma.
Foto: Arquivo pessoal
Acessibilidade e saúde
O atendimento público da saúde de Porto União é destacado por Ciro como um trabalho de excelência no quesito acessibilidade a cegos e do apoio ao tratamento, com o recebimento de valores da Assistência Social municipal para pagar o transporte até São Paulo, onde realiza o acompanhamento com especialistas para não perder os 4% de visão restante.
Outro ponto destacado é a acessibilidade urbana nas Gêmeas do Iguaçu, que, segundo Ciro, torna-se a cada gestão uma pauta prioritária; porém, o morador, que costuma fazer suas andanças pelo centro das cidades, identifica sobre seus pés um descuido por parte da população.
“Quem ainda não entendeu são os moradores. Fazem as calçadas do jeito que quiserem, com paralelepípedo, escada; a gente tropeça muito, cai… Colocam areia, pedras nas calçadas, não sinalizam com cones”, alertou. Para Ciro, há a necessidade de criação de uma lei para a construção de calçadas feitas, apenas, com paver.
Propósito de vida
Ciro é membro da Adevivi: Associação dos Deficientes Visuais do Vale do Iguaçu, onde realiza atividades de lazer e capacitação com demais membros e orientadores. Como a Associação é em União da Vitória, o ativista da causa, agora, avança com o projeto para fundar uma segunda entidade do outro lado dos trilhos, para atender, especialmente, municípios catarinenses em torno de Porto União.
Um olhar técnico sobre o glaucoma
Alysson Cesar Kampmann é oftalmologista há 18 anos na rede privada e pública da região. O profissional explica que há diversos tipos de glaucomas, sendo o mais comum o glaucoma primário de ângulo aberto que, segundo o oftalmo, costuma acometer pessoas com mais de 40 anos de idade; tem um fator genético e é uma doença silenciosa.
“O aumento da pressão intraocular faz com que o paciente comece perdendo a visão periférica e não note no início, com o avanço da doença o campo visual vai diminuindo e muitas vezes o paciente só vai notar quando tiver uma grande perda da visão”, alertou.
Há, também, o glaucoma congênito, quando a criança nasce com a doença; o glaucoma infantojuvenil que aparece na juventude; o glaucoma agudo de ângulo fechado, que, neste caso, se torna uma emergência médica. “Pois há um aumento repentino da pressão intraocular e o paciente apresenta dor intensa, muitas vezes com náuseas e embaçamento visual. Essa pressão deve ser baixada o mais rápido possível, pois pode levar a perda da visão permanente”, destacou.
Outros glaucomas são causados por inflamações intraoculares e, também, pelo diabetes não controlado. Os quais, segundo Alysson, têm que tratar a causa, e não somente a diminuição da pressão intraocular.
O diagnóstico precoce na prevenção do glaucoma
O oftalmologista destaca que o diagnóstico do glaucoma primário de ângulo aberto geralmente é feito na consulta de rotina, antes que o paciente apresente perda significativa da visão, o seu tratamento pode ir desde o uso de colírios como a necessidade de laser ou cirurgia para controle da pressão intraocular.
“O glaucoma age lesionando o nervo óptico, que ficará com parte ou totalmente atrófico e isso resultará na diminuição do campo visual até a perda total da visão. O dano que o glaucoma causa é irreversível. Não existe maneira de reversão para recuperação da visão”, lamentou.
No tratamento com colírios, Alysson explica que esses agem pela diminuição da formação do líquido intraocular (humor aquoso) ou no aumento da drenagem deste para que diminua a pressão intraocular, existindo várias classes de colírios que muitas vezes são usados associados.
“A melhor prevenção do glaucoma é através de consultas de rotina, onde, muitas das vezes, a doença será detectada em um estágio precoce”, ressaltou o profissional.
Instituto dos Olhos em União da Vitória
Na perspectiva de atender a demanda populacional de saúde dos olhos, Alysson está finalizando a construção do Instituto dos Olhos, em União da Vitória. O Instituto terá uma equipe de oftalmologistas e investimento em equipamentos.
“A ideia é que se resolva o máximo possível dos problemas oftalmológicos aqui sem a necessidade de deslocar os paciente a um centro maior como Curitiba”, explicou, otimista.
O oftalmologista destaca que o espaço atenderá os mais diversos convênios e planos de saúde e, também, haverá atendimento aos consórcios intermunicipais de saúde, como o Cisvali (pelo lado do Paraná) e o Cisamurc (pelo lado de Santa Catarina).
Abril marrom: a luta contra a cegueira no Brasil
Idealizado em 2016 pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia, o Abril Marrom foi o mês escolhido para a temática da saúde dos olhos, pois no dia 8 de abril comemora-se o Dia Nacional do Sistema Braille. Já a cor marrom foi a definida por ser a cor de íris mais comum nos olhos dos brasileiros.
Catarata, glaucoma, retinopatia diabética, descolamento de retina e degeneração macular. São essas as principais causas de cegueira no Brasil e que, muitas vezes, podem ser evitadas. Prevenção, aliás, é a palavra-chave no chamado Abril Marrom, campanha de saúde que tem o objetivo de reduzir a incidência de casos de deficiência visual, por meio da conscientização da população sobre a importância da prevenção, do diagnóstico precoce e do tratamento correto das doenças oculares, como explica o Ministério da Saúde em sua cartilha de conscientização do mês.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), de 60% a 80% dos casos de cegueira no mundo poderiam ter sido evitados se houvesse diagnóstico médico precoce e tratamento adequado.