Crônica: “Você lembra quem eu sou? Qual é minha função?” _“Sim, você ajuda as pessoas”
A pergunta foi realizada por mim na audiência em que o adolescente Willian, 16 anos, era interrogado. Estava preso (apreendido é o termo que consta na lei, por ser menor de idade) há dois dias. O motivo da prisão as graves lesões causadas por violenta agressão que havia praticado em face de uma amiga.
Ao iniciar a audiência inquiri a Willian se lembrava de mim, respondendo ele imediatamente: “sim, você é o doutor Carlos Mattioli”.
_ “E lembra-se o que eu faço, qual é minha função?” questionei a seguir, quando Willian também prontamente falou: “Sim, você ajuda as pessoas”.
Esperava, como de praxe, que respondesse o adolescente que eu era o juiz, que eu julgo os processos, algo nesse sentido. A resposta inesperada me fez refletir mais uma vez sobre a grande responsabilidade do trabalho judiciário.
Willian estava respondendo por um grave crime (ato infracional o termo jurídico para menores de idade). Não se tratava de alguém favorecido por uma decisão judicial que concedera medicamentos antes negados pelo Estado, ou recebido uma pensão alimentícia que antes não vinha sendo paga, ou qualquer outra sentença abonatória. Ao contrário, eu havia poucos dias antes decretado sua prisão.
Mas o raciocínio de Willian possuía alguma lógica e razão, na medida em que durante sua vida, por diversas vezes, fora atendido em nosso fórum, inclusive pessoalmente por mim.
O primeiro contato com o adolescente já foi narrado em outra crônica algum tempo atrás. Era ainda muito jovem, quando o abordei na rua, onde pedia dinheiro para comprar comida. Perguntei seu nome, seu endereço, e naquele mesmo dia recebeu em casa a visita do Conselho Tutelar.
Chamamos ele e a mãe ao fórum, diligenciamos o seu retorno para a escola, que havia abandonado semanas antes, ajudamos com a “falta de comida” em casa. Quando da vinda do relatório do município sobre a situação familiar, constatou-se que Willian já fazia uso abusivo de crack, e sua perambulação pelas ruas pedindo dinheiro se dava em verdade para sustentar seu vício.
Em uma das visitas atendi pessoalmente o adolescente, após a entrevista com a equipe de psicologia, falei da importância do comparecimento no CAPS para o tratamento em razão da dependência química, vinculamos Willian aos programas de jovem-aprendiz do CREAS, para a profissionalização e busca de trabalho. No final do atendimento ajudamos a montar seu primeiro currículo, para que pudesse entregar em empresas e no comércio.
Veio ao fórum diversas outras vezes. Em uma delas compareceu com a mãe, quando pediram auxílio para comprar medicamentos indicados para o tratamento médico, que estavam em falta na farmácia do Município. Perguntei o valor, e tirei o dinheiro da carteira ali no corredor mesmo. Durante a pandemia, como não conseguia acompanhar as aulas on-line, conseguimos com parceiros a doação de um aparelho celular e um carregador, para que não ficasse restrito às tarefas impressas.
O telefone foi trocado por algumas pedras de crack pouco tempo depois. E infelizmente, os tratamentos médicos pelos quais passou ao longo dos anos não surtiram efeito desejado quando Willian, tomado pelo vício, acabara agora por se envolver com situação de grave violência, o que o levou à prisão.
Em nossa gestão organizacional no fórum trabalhamos para que a equipe receba e atenda com o mesmo nível de respeito e empatia a todos que nos procuram, independente do problema ou situação que estejam envolvidos.
Quanto ao trabalho judiciário, necessário compreender que as decisões judiciais causam consequências muitas vezes severas para os envolvidos em processos, e que existirão descontentamentos, e manifestação de revolta e incompreensão. Contudo, a tarefa de prestação de serviço judiciário sempre poderá trazer alguma reflexão, mesmo para quem perde algum direito que entende deveria ter sido atendido.
Alguns anos atrás, eu presidia uma audiência no interior da comarca. O processo, complexo e de muita sensibilidade, eis que ao final da audiência deveria eu julgar pelo afastamento (ou não) em definitivo de pai e mãe das crianças. Por mais que todos os documentos e relatórios de acompanhamento da família indicassem que seria esse o caminho naquele caso, a audiência pode eventualmente trazer fatos novos, que possibilitem a concessão de uma nova chance derradeira de retomada da criação dos filhos.
Não foi o que se verificou naquele processo judicial, todavia. Todas as testemunhas ouvidas confirmaram a grave negligência de pai e mãe na criação dos pequenos infantes. Eram quatro crianças, que haviam sofrido maus tratos e outras violências pela falta de cuidado, descaso e omissão dos pais, até que ocorrera a intervenção da justiça, que abrigou os filhos.
Ao final da audiência a sentença foi proferida oralmente. Ao fazer o relatório do caso e justificar o afastamento definitivo das crianças da família, decisão das mais “pesadas” que o Poder Judiciário possa proferir, olhei nos olhos daqueles jovens pai e mãe, na casa dos vinte e poucos anos de idade.
Constatei a gravidade de suas condutas, e especialmente que os filhos mereciam ser recebidos por outra família, na qual pudessem ser criados com carinho, cuidado, respeito e amor, situações essas que haviam sido sonegadas de forma flagrante pelos pais. Ressaltei que não havia qualquer possibilidade de a eles ser concedida outra chance.
Finalizando minha fala, ainda no proferimento da sentença, desejei que pudessem refletir sobre tudo que havia sido falado naquele dia, que deveriam buscar uma mudança de comportamento, afastando-se do álcool, das “amizades” ruins, e de tudo mais que os levara a perder os filhos. Também manifestei a esperança de que essa reflexão trouxesse-lhes trazer melhor condição de vida futura, e que independente de seguirem ou não a vida juntos, como casal, que fosse possível ser concedida a eles a oportunidade de amadurecer, e quem sabe, por esforço próprio, e com o apoio do poder público, constituir família com prole novamente, e nunca mais passar por uma situação tão difícil como aquela (o afastamento dos filhos para sempre).
Mas a decisão naquele processo, infelizmente, era irreversível, destaquei, encerrando a sentença, e por consequência também a audiência.
Normalmente situações como essa causam choro copioso, e por vezes até mesmo falas de raiva e revolta. Naquela audiência, pai e mãe ouviram a sentença atentamente, e não manifestaram qualquer palavra, apenas enxugavam as lágrimas, permanecendo o ambiente com incômodo silêncio, enquanto coletávamos as assinaturas ao final.
Quando já havíamos encerrado, tendo os advogados e Promotor de Justiça se retirado da sala, permanecendo apenas eu e a estagiária que me auxiliava, vi que o pai parou pouco antes da porta, e virou-se para mim. No exato momento em que o visualizei disse: “senhor juiz, muito obrigado por tudo”, saindo através da porta em seguida.
*o nome aqui utilizado é fictício.
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