Crônica: “Ela ficou imóvel, paralisada, não falou mais nenhuma palavra…”

Pouco antes a mulher vítima de violência doméstica havia sido atendida por uma de nossas psicólogas. Antes de conversar com ela pedi que resumisse a entrevista.

“Doutor Carlos, foi muito difícil. À medida que fui avançando nos questionamentos sobre o comportamento do marido, ela interrompeu o processo de fala, ficou por longo tempo emudecida, não houve mais entrevista na realidade, pois não consegui acessar informações que pudessem conduzir a abordagem. Em resumo, ela não falou nada sobre as violências doutor”.

Nos atendimentos que faço pessoalmente procuro utilizar a técnica da escuta livre, ou seja, evito perguntas mais íntimas e sensíveis. Os assuntos são sugeridos, ficando a mulher vítima livre para falar, ou não, sobre as situações que vivencia. A abordagem técnica fica com os profissionais da psicologia, que possuem a capacitação necessária para melhor aclarar questões mais reservadas. Como regra, contudo, muitas informações são trazidas a mim também. Não raro inclusive mulheres vítimas trazem nas minhas abordagens questões privadas de forma detalhada, até mesmo relatos de abusos sexuais sofridos pelos companheiros, maridos, namorados.

No atendimento de Gislaine, 50 anos, gerente de uma grande agência bancária, todavia, após falarmos sobre a importância do seu trabalho, a grande equipe da qual ela era gestora, também sobre a saúde fragilizada de sua filha adolescente, assim que o tema da violência praticada pelo marido veio à tona, não houve mais nenhuma resposta. Automaticamente interrompeu a fala e nem mesmo mexia mais seu corpo, nem seu olhar fixo. Continuou o contato visual comigo, mas imediatamente ao sugerir trouxesse o relato das violências vivenciadas ficou imóvel, paralisada, não disse mais nenhuma palavra, exatamente como já havia ocorrido na abordagem da psicóloga.

Nestas entrevistas, ao final faço o relato das possibilidades sobre a violência doméstica na seara criminal, junto à Delegacia de Polícia, com o pedido de afastamento e medida protetiva do agressor, ainda da possibilidade de eventualmente, mesmo não acessando os serviços policiais buscar auxílio jurídico para promover o processo de separação (divórcio), também a importância da psicoterapia para que possa incrementar o empoderamento. O atendimento psicológico terapêutico contínuo permite aperfeiçoar a reflexão para a tomada de decisões de autoproteção, assim como de segurança psicológica dos filhos com quem convivem.

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Apesar da manifestação de inércia, assim segui na abordagem com Gislaine. Porém, a partir dali continuou imóvel até o final da entrevista. Tenho dúvida até mesmo se alguma informação realmente foi por ela absorvida naquele momento.

Mesmo com alto grau de instrução, situação econômica confortável, estudo avançado, e toda a capacitação para gerir uma grande equipe no local onde trabalhava, o processo de emancipação e empoderamento que havíamos planejado para Gislaine pouco efeito produziu. Para além da preocupação com a mulher vítima, a situação familiar dela trazia outra questão muito sensível. Como o crescimento e desenvolvimento da filha, na época com 15 anos, esta passou a ter maior consciência da gravidade das condutas do pai, que presenciava todos os dias, causando-lhe mais que profundo desconforto, medo de que algo pior pudesse acontecer a qualquer momento. “Eu tenho pavor do pai doutor. A impressão que fico é de que qualquer dia vou chegar da escola e ele terá feito algo pior com ela. Eu não quero ficar sem mãe. Mas não entendo o que acontece. Ela promove campanhas de prevenção à violência contra a mulher lá no trabalho dela, e não consegue sequer enxergar o que está acontecendo com ela. Tem a esperança de que as coisas possam melhorar, que o pai possa mudar de comportamento, mas a situação só piora”.

A filha adolescente passou a desenvolver uma série de problemas de saúde com a angústia que vivenciava. Passou por inúmeros médicos e tratamentos, por várias vezes foi internada, algumas de forma emergencial. O diagnóstico médico de que ela estava somatizando intenso sofrimento por ver a mãe ser agredida e humilhada todos os dias. E mesmo vendo a piora do quadro da filha, nenhuma atitude por Gislaine era tomada. Arrisco dizer que sequer fazia a correlação dos problemas de saúde da filha com a violência cotidiana que presenciava.

Nosso foco no atendimento da família pelo projeto Rede de Ajuda, que atende mulheres vítimas de violência doméstica, passou a dar um pouco de alento à filha adolescente, além de instrumentos para que pudesse viver melhor, mesmo diante do quadro de inércia da mãe para com os atos violentos do pai. Na época inclusive fora concedida medida protetiva na seara infantojuvenil, com o afastamento do homem de casa, a qual foi solenemente descumprida e ignorada pelo pai. A ela foi ofertada a moradia com a madrinha, com quem tinha forte vínculo afetivo, porém optou por permanecer em casa: “eu prefiro não sair Doutor Carlos, não conseguiria nunca mais dormir tranquila sabendo que algo mais grave possa acontecer e eu não estarei em casa para de alguma forma protegê-la”.

O empoderamento da mulher se traduz em uma série de medidas aplicadas de forma interdisciplinar, para amenizar os efeitos da depressão, ansiedade, sentimento de culpa e medo, assim como trazer reflexão para que a vítima possa compreender que pode tomar atitudes de autopreservação para cessar as humilhações, agressões físicas e psicológicas, desqualificações e xingamentos que sofre.

Buscamos a melhora da autoestima e autoconfiança, mas nem sempre conseguimos avançar, apesar de toda concentração de esforços. Gislaine continua até os dias de hoje convivendo com o marido violento. A filha adolescente melhorou após nossos atendimentos, mas ainda tem muitas recaídas, diante da inação da mãe.

Já em atendimento mais recente, recebi por encaminhamento de uma professora da escola a estudante Jessica, 14 anos de idade. O relato a conduta violenta do namorado, 19 anos. Estavam juntos há dois anos, e Juliano passou a exercer conduta de domínio da vida de Jessica, com ciúmes doentio, submissão, controle das amizades da adolescente, acesso às conversas do celular, controle das roupas. “Ele vem todos os dias na escola doutor Carlos, fica esperando na saída, ela fica nervosa, não pode conversar com ninguém, ele faz ela sair da sala de aula quando não responde no celular rapidamente”, relatou a professora.

Quando veio ao fórum, Jessica foi primeiro atendida pela psicologia, e depois dirigiu-se até minha sala. Aparentava cinco ou seis anos mais que sua idade. Já havia contado várias situações de violência na entrevista psicológica, e ressaltei que não precisaria repetir o relato comigo. Ainda assim, Jessica trouxe de forma detalha da uma série de humilhações que vinha sofrendo. Antes mesmo que eu fizesse alguma pergunta contou inclusive que o namorado a forçava a ter relações sexuais sem proteção. Ao ser questionada sobre a manutenção do relacionamento foi incisiva: “estou aqui para pedir socorro juiz, não quero mais ver ele”.

No mesmo dia proferi decisão proibindo o namorado de qualquer contato pessoal e por mensagens ou redes sociais. Mas a situação não se resolveu facilmente. Jessica foi muito pressionada por toda a família, inclusive pelos pais, para voltar atrás. O namorado era pessoa muito querida na comunidade, bastante comunicativo, criou forte vínculo com todos que conviviam, sendo idolatrado pela família e amigos da adolescente.

Mesmo diante de toda a fragilidade da ainda muito jovem Jessica, criamos vínculo, e trouxemos elementos para que pudesse lidar com a pressão e enfrentamento das dificuldades que passaria adiante, deixando-a à vontade para que pudesse decidir pelo seguimento ou não do relacionamento. “Doutor Carlos, eu já ressaltei para  a psicóloga e lhe digo mais uma vez. Não quero mais continuar passando por isso. Não vou mudar de ideia”, afirmou com segurança.

Uma semana depois do atendimento, Jessica chamou-me no chat do Instagram, em um sábado, pela noite. Na mensagem dizia que estava isolada em casa, pai e mãe não mais lhe dirigiam a palavra. Os amigos reuniram e foram até sua casa, na zona rural do pequeno município onde vive, pedindo que pudesse reatar, que conversaram com o namorado, e ele prometia mudança dos comportamentos.

Perguntei o que pensava sobre isso, e logo a seguir respondeu: “vou dar uma chance a ele novamente, juiz”. E assim, com sua concordância, marquei já para a segunda-feira novo atendimento, para que pudéssemos compreender sua manifestação, e eventualmente revogar a medida de afastamento.

O atendimento com a psicóloga não durou nem 15 minutos, e já vieram até mim. Antes que pudesse ouvir o relato da equipe, Jessica manifestou que não pretendia voltar para o relacionamento abusivo. “Foi um momento de fraqueza pela pressão de todos, juiz. Eu estou sozinha, ninguém está ao meu lado, ninguém me entende”.

Expliquei à Jessica que sozinha não mais estava, pois eu e equipe continuaríamos ao seu lado quanto tempo fosse necessário. Marcamos entrevista dos pais da adolescente para aquela mesma semana para orientá-los, determinei que o início do atendimento psicoterápico dela fosse antecipado pelo Município, e Jessica seguiu mais confiante e segura para sua casa no final daquele dia.

A medida de afastamento e proteção continua em vigor, e assim Jessica pode seguir sua vida adiante com um pouco mais de alento e segurança.

O empoderamento da mulher vítima de violência requer atenção, esforço institucional contínuo, priorização dos atendimentos, e essencialmente empatia e respeito.

Fica o desejo nessa semana do Dia Internacional da Mulher, que todos os dias, todo prestador de serviço público possa também refletir e compreender que é preciso fazer mais, e fazer diferente, para que se possa criar ambiente acolhedor, e de efetiva contribuição com a qualificação da autoconfiança de toda mulher que estiver sob sua responsabilidade.

*os nomes aqui utilizados são fictícios

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

 

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