Crônica: “Ela tem algum problema, tem dupla personalidade”
O caso foi encaminhado para atendimento ao nosso CEJUSC – Centro de Cidadania pelo Conselho Tutelar. No relato a preocupação da família com o comportamento da adolescente Rafaela, 12 anos, que passava muito tempo sozinha no quarto, não se relacionava mais com as amigas da escola, ainda estaria fazendo desenhos em que descrevia pessoas conhecidas, e listava nomes de quem deveria morrer. Segundo a família, Rafaela estaria ameaçando as irmãs pequenas. “Ela tem algum problema, tem dupla personalidade”, disse a mãe para o conselho. Constava também no relatório que ao pesquisar no aparelho celular de Rafaela, a família encontrou acesso a fotos de pornografia.
Rafaela tinha duas irmãs, crianças de pouca idade, e morava parte do tempo com a mãe, outra com os avós. Durante sua infância, a mãe separou-se do pai de Rafaela quando esta ainda era bebê, e assim moraram todos juntos por alguns anos na casa dos avós. Como a adolescente criou vínculos e rotina na casa dos avós, mesmo quando sua mãe assumiu novo relacionamento com Ricardo e mudou-se de residência, Rafaela continuou passando boa parte do tempo na antiga casa.
Chamei Rafaela ao fórum para atendimento, e primeiro foi ouvida pela equipe de psicologia do Cejusc. Contou que seu avô, aposentado, possuía grave problema de alcoolismo, fazendo uso de bebida todos os dias. A avó, frequentadora assídua da igreja, lá permanecia boa parte do dia. Como sentia falta da mãe e das irmãs, pedia para dormir nos finais de semana na casa delas. “Mas, a mãe sai com o padrasto Ricardo e me deixa sozinha cuidando das irmãs pequenas”, relatou. “Quando ela sai trabalhar ele fica com nós (sic), mas não gosto dele, ele é ruim”, contou para a psicóloga que a ouviu.
Rafaela também relatou seu comportamento ansioso: “às vezes choro sem motivo, e nestes momentos minhas mãos começam a tremer, demoro em conseguir dormir, não sinto vontade de comer.” Também disse que gostava de desenhar, e quando estava triste se expressava por meio dos desenhos.
Antes de atender Rafaela pessoalmente, pedi para ver os desenhos que o conselho tutelar havia trazido com o relatório. Não havia exatamente ameaça de morte de conhecidos, como informado pelo conselho e pela família, mas vários desenhos de vampiros, monstros, lista com nomes de pessoas conhecidas; em uma das folhas desenhou um coração sangrando, em outro uma faca escorrendo sangue também.
Nem sempre no primeiro atendimento da psicologia o(a) atendido(a) sente-se seguro para contar tudo que passa. Por vezes, isso somente acontece nos atendimentos seguintes. Quando chamo crianças e adolescentes após as entrevistas e acolhimentos procuro reforçar o ambiente de segurança e auxílio para que se sintam à vontade de relatar mais precisamente as dificuldades que vivenciam.
Rafaela entrou em minha sala muito tímida. Aparentava três ou quatro anos menos que sua idade, sentou-se à minha frente, demorou alguns minutos para mirar seu olhar em mim. Comentei que conhecia sua escola, que já havia palestrado lá algumas vezes, que sempre converso com alunos para ajudar quando passam por alguma dificuldade, que essa é principal atividade de meu trabalho: ajudar crianças e adolescentes.
Rafaela ainda permanecia com a cabeça baixa e quase calada, somente respondendo de forma monossilábica. Coloquei seus desenhos sobre a mesa e contei que quando criança fiz um curso de desenho, mas tinha muita dificuldade de desenhar pessoas e objetos, e que somente consegui algum destaque, quando passei por sugestão do professor de artes a desenhar abstrato, com giz colorido. A adolescente passou a prestar mais atenção na conversa, quando comentei alguns desenhos seus e elogiei: “diferente de mim, você tem o dom de desenhar, siga desenhando sempre”. Rafaela abriu pequeno sorriso no canto da boca: “é sério que você gostou? Eu não sei porque criticam e se assustam com meus desenhos, eu gosto desses personagens”, relatou.
Perguntei para ela sobre os desenhos de facas e o coração com sangue escorrendo, comentei que algumas vezes quando recebemos desenhos assim se tratam de pedido de ajuda, de alguém que está passando por uma situação ruim. Reforcei que poderíamos ajudá-la se algo estivesse acontecendo: “Você pode sempre nos procurar, pode pedir para voltar aqui outro dia, estamos aqui sempre trabalhando para ajudar”, e antes que eu terminasse o raciocínio Rafaela interrompeu: “Juiz, eu tenho uma coisa ruim para contar. Eu já contei para minha mãe, mas ela não acredita em mim, disse que eu sou louca, e que eu não tenho que falar isso para ninguém.”
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A seguir, de forma espontânea, Rafaela disse que seu padrasto Ricardo “fazia coisas com ela”. “Você gostaria de nos contar o que ele faz Rafaela?”, perguntei. “Sim, juiz, ele gosta de me beijar na boca e passar a mão no meu corpo.”
Com a notícia da violência sexual, naquele mesmo dia decretei medida judicial de afastamento do padrasto da adolescente, e encaminhei a nossa documentação para a polícia para a abertura de inquérito policial.
Mas a situação não se resolveu da melhor forma adiante. A mãe continuou a desacreditar a fala da filha, e o padrasto não saiu voluntariamente de casa, mesmo após intimado da decisão judicial. Entre idas e vindas dele à residência, foi necessário conceder a guarda unicamente para os avós, com os quais Rafaela passou a morar em definitivo. Desde essa data Rafaela nunca mais voltou a morar com a mãe. Quando o padrasto se mudou para outro estado em razão do trabalho, a mãe acabou o acompanhando, e lá permaneceu. Ao menos a adolescente estava agora segura residindo com os avós.
Algumas semanas depois deste primeiro atendimento recebi chamada de Rafaela no whatsapp: “Juiz, posso ir no fórum falar com você?”
Qual não foi a surpresa quando naquela mesma tarde Rafaela entrou em minha sala acompanhada da psicóloga segurando nas mãos uma folha de papel. Nela um desenho. Aproximou-se de minha mesa e falou: “Fiz esse para você! É uma forma de te agradecer.”
O desenho era de um homem com asas de anjo e uma auréola. Acima escrito: “Carlos Mattioli, você é um anjo”. E ao lado a mensagem: “Vocês são como uma segunda família para mim. Em momentos tristes fizeram eu sorrir. Você merece o mundo pelo que faz e para o meu coração trouxe alegria e paz. Obrigado por tudo. Rafaela”.
Nem precisaria dizer que a emoção tomou conta de mim.
Continuamos a acompanhar Rafaela nos meses seguintes, em conjunto com a equipe do município. A adolescente iniciou psicoterapia e também promovemos melhor capacitação da avó para lidar com a neta adolescente no dia a dia. O avô foi encaminhado para tratamento em razão do alcoolismo, não tendo aderido ao plano preparado para ele infelizmente.
Em uma das vindas de Rafaela ao fórum novamente pediu ajuda: “O avô está insuportável. Ele fala coisas feias quando bebe, só incomoda, e fico com medo também dele fazer algo comigo”.
Nossa equipe o chamou ao fórum para entrevista. Após passar pelo setor de psicologia me dirigi até a sala do atendimento para também conversar com ele. Quando questionado sobre o abuso de álcool, ao começar a falar era perceptível que estava em leve estado de embriaguez: “Juiz, eu não estou mais bebendo, eu parei”. Esclareci que era necessária imediata aderência dele ao tratamento proposto pela secretaria de saúde, sem o que infelizmente teríamos que deliberar judicialmente pela sua saída de casa. Pedi que refletisse sobre o assunto e voltasse no dia seguinte, sóbrio, para continuarmos o atendimento. Imaginei que o avô não voltaria, mas lá estava no corredor do fórum um dia depois. Chamado para a entrevista, antes mesmo que iniciássemos a conversa apressadamente disse: “eu vou parar Doutor Carlos, não quero mais isso para minha vida”.
Durante as conversas com o avô era perceptível que ele não tinha vários dentes na boca, e naquele dia, de forma instintiva, sem ainda nem mesmo saber como faria para cumprir a promessa, fiz uma proposta de acordo com ele: “Se conseguirmos um tratamento odontológico para poder recuperar os dentes, sem qualquer custo, o senhor se compromete a parar imediatamente o uso de bebida a partir de hoje?” A resposta foi rápida e firme: “Conte comigo, doutor”.
Incrivelmente de todos os relatos posteriores da avó e de Rafaela a partir deste dia o avô nunca mais fez uso de bebida alcóolica.
Os dentistas que nos ajudaram graciosamente com os atendimentos do avô e também de Rafaela (a qual precisou fazer extração para acomodação da arcada dentária e colocação de aparelho) Dr Igor Prado e Dra Pâmela Thaís Gomes do Valle.
Nenhum problema médico ou transtorno de personalidade foi detectado em Rafaela. Mais adiante iniciamos no Cejusc sua orientação vocacional e preparo para futuro ingresso no mercado de trabalho. Ela está estudando, tem boas notas, foi encaminhada para cursos em contraturno no município. E continua desenhando.*os nomes dos atendidos aqui utilizados são fictícios.
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