Crônica: “Eu conheço o juiz. Ele me ajuda. Ele me escuta. Ele me deu um pote de Nutella”

Na semana em que se comemora o Dia Nacional da Adoção me vem à mente a situação das crianças (até 12 anos de idade) e adolescentes (12 a 18 anos) inadotáveis. Embora existam pretendentes inscritos para adotar no país, em número significativamente maior do que crianças acolhidas aptas aguardando a adoção, muitas delas não terão a oportunidade da convivência com uma família em razão de suas particularidades.

Eu conheco o juiz. Ele me ajuda. Ele me escuta. Ele me deu um pote de Nutella

São elas, as crianças com problemas de saúde ou com idade avançada, também os grupos de irmãos. Embora já tenhamos promovido ao longo dos anos diversas adoções tardias ou mesmo de irmãos, a maior parte deles não encontram pais e mães interessados em recebê-los. Inevitavelmente, os inadotáveis de alguma maneira são “adotados” pelos próprios integrantes da rede de proteção dos municípios, recebendo também especial atenção nos processos judiciais que os acompanham, e mesmo diretamente por este juiz, criando-se um vínculo bastante especial, que supre em parte a total carência de afeto e cuidado pela família biológica, e mesmo de provento material mais básico.

Já levei adolescente abrigado que sonhava em se tornar jogador de futebol para “peneira” de um time de União da Vitória. Não houve sucesso na seleção, mas ao menos o abrigado ganhou um uniforme e uma chuteira novos para jogar bola em seu horário de folga.

Certa vez, ao visitar um abrigo um adolescente me falou da falta que fazia uma “caixa de som” para ouvir as músicas que gostava. Voltei com uma caixa de som azul, a mesma cor que ele havia pintado o cabelo aquela semana na casa-lar onde aguardava a “recuperação” de sua família para recebê-lo de volta.

Algumas semanas depois, quando já estava desacolhido vi no seu Facebook o anúncio de venda da caixa de som. Não houve nem tempo para ouvir as propostas. Ela fora trocada por algumas pedras de crack, quando o adolescente de 11 anos infelizmente teve uma recaída e voltou a fazer uso da droga.

Por muitos anos acompanhamos uma adolescente acolhida em uma cidade da comarca de nome Juliana. Em uma visita na casa-lar, esta me relatou sua afeição por crianças. “Eu gosto muito delas doutor, quero ser professora de ensino infantil, mas pesquisei e não tem o curso por aqui”.

Imediatamente pedi para a equipe de Psicologia entrevistá-la e documentar seu pedido em um relatório, e após ouvir a Promotoria de Justiça determinei judicialmente sua transferência para o ensino médio de formação de docentes (antigo magistério) em outro município, também que a prefeitura providenciasse seu deslocamento de ida e volta todos os dias.

Pouco tempo depois ela me chamou no whatsapp: “doutor, não está dando certo isso aqui. Eu comecei o estágio na creche e não estou gostando de nada”. Chamei-a ao fórum para conversar: “O que aconteceu Juliana? Você me relatou dia desses que era seu sonho ser professora de crianças”, quando prontamente me respondeu: “eu percebi que gosto de crianças sim. Mas elas lá e eu aqui!” E lá fomos nós novamente documentar agora sua desistência, retornando sua transferência para o ensino regular.

Esta mesma adolescente em razão de questões ligadas ao seu bem-estar mental passou por um período de internação em uma clínica psiquiátrica. Por indicação médica, mas contra sua vontade na época. Logo ao entrar na clínica não parava de falar meu nome, pedindo por mim a todo o tempo. Ao receber a notícia pedi sua condução para o fórum e conversamos, em seguida esta retornou à clínica para dar continuidade ao seu tratamento.

Quando a reencontrei já adulta Juliana fez logo um longo texto no Facebook sobre o vínculo comigo: “quando se trata do Doutor Carlos eu não consigo controlar as minhas emoções e as palavras vão surgindo e eu preciso falar, eu preciso expressar toda a gratidão que tenho por esse ser humano que nos meus piores momentos foi meu anjo da guarda (…) Então eu não exagero quando falo que a pessoa que me ajudou a viver foi ele, foi o Doutor Carlos Mattioli, quando tive que passar por um internamento (não tenho vergonha em dizer isso, pois foi necessário e hoje eu entendo) e costumava falar que meu amigo juiz iria me tirar de lá, mas como o melhor pra mim era ficar lá, ele não fez o que eu pensava que ele faria e isso me decepcionou e demorou pra mim entender o motivo pelo qual ele havia me deixado lá, depois que eu entendi me senti mal por ter pensado dessa forma.” (sic)

Outra adolescente, Kelly, vítima de violência sexual do padrasto, também acolhida, afastada da família, teve recomendação de internação psiquiátrica como parte do tratamento e da mesma forma repetia a todo momento ao ser internada: “Eu não quero ficar, eu conheço o juiz, ele vai me tirar daqui, ele me ajuda, ele me escuta, ele me deu um pote de nutella” dizia para a equipe do hospital e para as outras meninas que estavam internadas na sua ala. Atendendo ao pedido da equipe médica, desloquei-me ao hospital para conversar com ela sobre a importância do tratamento. Ao lá me ver, muito surpresa se emocionou. Quando já conversávamos reservadamente desapontada disse: “mas, então o doutor não veio aqui para me tirar?”

Antes do abrigamento de Kelly, quando passou um tempo morando com sua irmã maior de idade, atendendo seu pedido as ajudei com uma cesta básica. Quando passaram pelo fórum para atendimento no setor de Psicologia pediram para falar comigo: “Doutor, obrigado pela cesta, veio macarrão, arroz, feijão, e tudo mais, mas não seria possível também uma cesta só com “porcarias”? Porcaria nunca tem lá em casa”. E atendendo ao pedido delas fiz uma compra e pedi para entregar na casa uma “cesta” com carne, empanado recheado, bolacha e um pote de nutella.

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Quando terminei a conversa com Kelly no dia do hospital, e esta voltava para seguir seu tratamento, a equipe médica me relatou o caso de outra adolescente que havia mencionado no dia anterior um abuso sexual que sofrera também pelo padrasto, enquanto morava com sua mãe antes da internação.

Pediu também para falar comigo. Acertamos que não voltaria para casa enquanto ele lá morasse, e de imediato acionei a equipe para preparar uma medida de afastamento do agressor. Na conversa relatou seu sonho de trabalhar para se tornar logo independente, e também já foi incluída em nosso projeto de cidadania para profissionalização e preparo para o primeiro emprego.

Já me levantava para ir embora quando se dirigiu a mim novamente: “posso fazer só mais uma pergunta?” Respondi, afirmativamente com a cabeça.

-“Tem uma menina lá na minha ala que fala todo dia que te conhece, e que ganhou de você um pote de nutella. É verdade isso?”

Com sorriso no rosto disse a ela: “quando lá voltar e encontrá-las, você vai dizer que acabou de conversar com o juiz, que expediu uma medida de afastamento para te proteger, e que vai conseguir um emprego para você. Eu imagino que elas não vão acreditar também”.

*os nomes aqui utilizados são fictícios

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

 

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