Crônica: “Fui ao fórum para matar o juiz que me prendeu”

“Fui ao fórum para matar o juiz que me prendeu”. Exatamente assim afirmou o adolescente, de 16 anos, condenado pela prática de ato infracional (quando o crime é praticado por menores de idade) bastante grave. O relato foi recebido pela assistente social do Centro Socioeducativo (Cense), uma espécie de presídios para menores, para onde foi transferido após audiência ocorrida no fórum.

Crônica Fui ao fórum para matar o juiz que me prendeu

A informação me foi repassada pela própria assistente social, por telefone. “É urgente doutor. Ela pediu para falar com o senhor agora mesmo sem falta” informou a estagiária que me repassou a ligação.

Ao atender, logo ouvi da profissional que trabalhava no Cense: “Doutor, o Alexandro comentou que estava com um objeto no tênis, e que conseguiu levar no fórum mesmo após a revista pessoal. Era o dia da audiência dele, e segundo a entrevista que fiz na sua admissão a intenção era mesmo matar o senhor”. Agradeci o aviso, afinal além da própria segurança, há uma preocupação com todos que trabalham no fórum, com o público que circula para os atendimentos e audiências.

“Mas não é só isso doutor! Eu estou ligando porque ele fugiu do Cense” disse em fala acelerada. Novamente agradeci e perguntei o horário que havia acontecido a fuga, já calculando mentalmente o tempo que levaria de deslocamento do Cense até a cidade onde eu trabalhava na época, para que pudesse avisar a segurança do fórum e a Polícia Militar em tempo de reforçar os cuidados. “Então doutor, foi na semana passada”, completou a assistente social, alertando que ele já estava em fuga há vários dias.

“E a entrevista quando foi?” Perguntei já bastante incomodado com a desídia da servidora. “Foi no começo do mês passado, no dia que ele ingressou aqui na instituição” destacou com voz mais embargada, procurando explicar o inexplicável, o não aviso em tempo, o que por certo era de qualquer modo injustificável.

Além de reforçar a segurança pessoal e do ambiente de trabalho foi solicitado o apoio policial para buscar o adolescente foragido, não tendo êxito a polícia em encontrá-lo, após diversas diligências.

Somente algumas semanas depois, quando chegava ao fórum, o policial militar que à época fazia a segurança do local ao me avistar apressou a passada para chegar até mim, enquanto eu já subia as escadas em direção ao primeiro andar. Mas não houve tempo de avisar a respeito da presença inesperada. Quando já se aproximava de minha sala, lá estava Alexandro sentado no banco com sua mãe, ao lado da porta, esperando minha chegada.

Rapidamente entrei na sala e chaveei a porta por dentro. Por telefone pedi ao policial que o levasse até a cela da carceragem do fórum, permanecendo apreendido até as providências de praxe. Sabe-se lá por qual motivo não foi preso ao adentrar no fórum naquele dia, já que havia mandado de prisão (apreensão na terminologia da lei) contra ele.

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A audiência que ele relatou na entrevista para a assistente social no momento da chegada no presídio não foi realizada por mim. Como estava em curso no Tribunal de Justiça, em Curitiba, foi presidida pela juíza que me substituía.

No dia em que se apresentou no fórum, primeiro conversei com sua mãe. “Está tudo errado doutor. Ele não é um menino ruim, é um ótimo filho, ficou muito revoltado quando seu pai foi assassinado, mas fugir da prisão não foi correto. Se ele fez algo errado deve pagar pelos seus atos, e eu o convenci a se apresentar aqui hoje”, disse a mãe agora solteira de outros quatro filhos, desempregada, analfabeta. “Eu sofria muita agressão do meu ex-marido. Quando ele se foi, apesar da tristeza toda da tragédia que foi a sua morte, eu achei que minha vida iria sossegar, e agora esse menino começou a incomodar”, disse desolada. “São as amizades que levaram ele para esse lado juiz, ele é um menino bom”, mais uma vez fez questão de ressaltar.

Pouco tempo depois já estávamos na sala de audiências para ouvir Alexandro, ele acompanhado agora da escolta policial, de seu advogado, na sala também o promotor de justiça e o estagiário que me auxiliava documentando os depoimentos. Iniciei a audiência me dirigindo ao adolescente: “Que história é essa de querer matar o juiz que te prendeu Alexandro?”

“É isso mesmo senhor juiz. Aquele dia eu queria, mas agora não quero mais”.  Apesar da fala inusitada e da gravidade do relato, quem estava na sala de audiência não se conteve diante de sua sinceridade, e todos caíram na risada.

A seguir Alexandro completou: “No dia da audiência eu ainda estava com muita raiva. Achei que nada aconteceria comigo. Sempre me falavam que com menor não dá nada (sic). Eu não sabia que menor poderia ser preso. Mas seria uma grande burrada minha, e também não sei se teria coragem mesmo.”

“Quando cheguei ao Cense eu contei a história porque queria ser respeitado lá dentro”. Alexandro em seguida fez uma longa reflexão, falou do desespero quando os traficantes mataram seu pai em uma emboscada, contou sobre seu vício. Começou fumando maconha, e quando percebeu já estava bastante comprometido com o uso de crack. “Pedra não é fácil juiz, porque quando dá a pira da droga (sic) a gente perde o controle mesmo”.  Alexandro passou a vender droga e se envolver com uma organização criminosa, o que o acabou levando à prisão.

Infelizmente o destino de Alexandro foi igual ao de seu pai. Após cumprir meses de prisão, logo após sua soltura envolveu-se em uma discussão no bairro e foi atingido em uma briga por golpes de facão, não resistindo aos ferimentos.

A história trágica felizmente não é comum em nossa região. Temos índices muito bons de recuperação de adolescentes que se envolvem com crimes e após o cumprimento de medidas mudam sua condição de vida. Um dos adolescentes com maior comprometimento com a criminalidade que já atendi hoje é pastor em sua igreja. Já recebemos adolescentes no próprio ambiente do fórum, após tempo de prisão para oportunizar uma primeira experiência de emprego, enfim, há muitas histórias de sucesso e plena recuperação.

Recordo-me de alguns anos atrás, em um início de noite chegava na academia onde treinava, quando ao descer do carro um senhor em uma bicicleta ao me visualizar desviou seu caminho em minha direção de forma bastante abrupta. Quase não conseguiu parar quando chegou e minha frente. Demorei a perceber que havia uma criança, menina, em sua garupa.

Ainda afobado enquanto descia da bicicleta em voz alta falou:

“Não acredito que te encontrei aqui juiz. O senhor lembra de mim?” Balancei afirmativamente a cabeça, em que pese não recordava daquele senhor com expressão de estafa, que quase acabara de me atropelar com sua bicicleta.

“Eu falei para meu filho que iria passar no fórum te agradecer. A prisão de meu filho foi a melhor coisa que poderia acontecer a ele. Lá ele refletiu doutor, viu que precisava se afastar de algumas pessoas, fez tratamento para o vício, voltou a estudar, aprendeu um trabalho. O irmão dessa aqui (disse se voltando para a menina que estava na garupa) é um novo homem. Ele está empregado, indo todo dia no Ceebja (escola para jovens com atraso escolar), fica até tarde fazendo a lição. Ele ainda vai dar muito orgulho para mim e para o senhor também. Muito obrigado senhor juiz”.

Se havia alguma dúvida sobre a veracidade do relato daquele pai, o sorriso de sua pequena filha enquanto ele falava, confirmou seu discurso de esperança, alento e agradecimento.

*o nome aqui utilizado é fictício.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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