Crônica: “Não sei o que está acontecendo comigo. Eu choro sem motivo”
“Doutor Carlos, queremos muito agradecer sua presença hoje em nosso CEMEI, na abertura de nossa exposição de artes. Também sua importante fala para nossos aluninhos, pais e mães aqui presentes”. O CEMEI estava lotado. Alunos e pais na minha frente, de um lado, de outro, preenchiam todo espaço muito bem organizado, onde permaneceram em respeitoso silêncio acompanhando toda minha explanação.
A Diretora em seguida chamou a estagiária do município que trabalhava na creche, aluna do ensino médio da rede pública, que era a curadora da exposição: “o senhor já conhece a Juliana. Ela trouxe uma especial lembrança para o doutor”.
E Juliana se aproximou de mim com uma enorme embalagem de presente nas mãos. Ao abrir qual não foi a surpresa que me causou intensa emoção. Um grande retrato meu pintado pela adolescente. O quadro encontra-se atualmente exposto em local de destaque em minha sala de trabalho no fórum.
Costumo mencionar nas inúmeras palestras e capacitações que faço em outros fóruns, também para as redes de educação e faculdades de Direito, que a Psicologia tem um grande destaque em nosso trabalho. Mais que isso, arrisco dizer que dificilmente um fórum em nosso país tem tantos profissionais e acadêmicos de Psicologia participando de absolutamente tudo que é promovido no seu cotidiano de trabalho. Seja nos acolhimentos de emergência, nos projetos de cidadania, na gestão, ou nas necessárias perícias nos processos judiciais. A Psicologia sempre está presente e é necessariamente ouvida e envolvida para deliberar os rumos que tomamos em todo o nosso trabalho.
Especialmente para o público atendido em todas as demandas, e ao longo do desenvolvimento das práticas que adotamos, o formato empático e afável que buscamos promover, tornou a Psicologia por umbilical e intensa ligação o centro da tomada das decisões.
Meses antes, Juliana chegou até mim por meio da diretora do CEMEI do Município interiorano de nossa comarca: “Nossa estagiária é aluna do ensino médio da rede escolar. É uma menina excelente Doutor Carlos. Não tenho qualquer reclamação ou menção negativa a seu respeito. Mas estamos preocupados com sua saúde mental. Ela não está bem. Fica cabisbaixa com olhar de tristeza. Podemos levá-la ao fórum para atendimento?” Questionou-me via WhatsApp.
O deslocamento não foi necessário. Naquela mesma semana havia pauta de audiências no posto avançado da Vara da Família na cidade onde moravam. E me acompanharia naquele dia uma de nossas psicólogas, com agendamento de entrevistas periciais: “Atenderei-a pessoalmente ao final das audiências, diretora. E após nossa psicóloga fará seu acolhimento e entrevista”.
Terminadas as audiências Juliana já me aguardava acompanhada da Diretora. Pedi que entrasse sozinha em uma das salas do posto avançado. Cumprimentei-a, e falei um pouco sobre meu trabalho, a função do juiz da criança e adolescente na proteção e garantia dos direitos de todos alunos que atendo. Estava sobre a mesa seu histórico escolar. Boas notas, mas muitas faltas nos últimos anos.
Juliana ainda muito tímida ajeitava seu material escolar sobre o colo: “Pode deixar aqui ao lado, só não esquece de levar quando terminarmos”, disse a ela. Notei um caderno com um desenho na capa: “esse desenho é seu?”
“Sim juiz, eu adoro desenhar. Gosto de escrever e desenhar. Alivia muito minha ansiedade. Mas confesso que ultimamente nem mesmo meus desenhos tem ajudado. Não consigo prestar atenção nas aulas, não estou dormindo e comendo direito”, disse Juliana.
Sempre explico aos adolescentes com quem converso que se houver alguma situação de risco, ameaça ou qualquer outro problema, podemos buscar formas de ajudar e proteger. Se for o caso afastar pessoas que estão fazendo o mal. Não raro nesse momento da abordagem surgem relatos de violências de toda espécie, algumas que nunca antes foram relatadas. Na conversa com Juliana, porém, ela de forma segura manifestou que não havia qualquer problema nesse sentido. Já indicando estar mais segura com a conversa esclareceu: “Eu na verdade não sei o que está acontecendo comigo. Eu choro sem motivo, às vezes não tenho vontade de sair de casa para ir para a escola. Fico trêmula, respiração acelerada, com palpitação. Mas não tem nada de errado. Ninguém fez nada comigo, juiz”.
A partir dali a psicóloga de nossa equipe foi chamada e assumiu o atendimento, que durou cerca de quarenta minutos. Ao final me relatou realmente inexistir qualquer indicativo de violência: “Ela está com crises de ansiedade. A psicoterapia vai ajudá-la a trabalhar seus anseios, suas questões pessoais. Mas é preciso começar imediatamente doutor”.
Sentei-me em um dos computadores do posto avançado e ao final do dia já havia determinado judicialmente o atendimento pela rede de saúde do município.
Nem mesmo foi preciso aguardar os relatórios da saúde. Juliana continuou conversando comigo nas semanas seguintes via WhatsApp, quando contava sobre seu tratamento e sua evolução. Durante aquele ano letivo não teve mais faltas na escola. Suas notas melhoraram ainda mais.
Alguns meses depois a diretora voltou a me procurar: “Doutor Carlos, eu não sei o que vocês fizeram com a Juliana. Nem parece a mesma adolescente. Está extrovertida e falante. Seu desempenho no estágio melhorou. Está desenhando cada vez mais. Precisa ver a qualidade dos desenhos que ela faz Doutor”.
No final daquele ano, Juliana foi agraciada com a curadoria dos trabalhos dos alunos do Cemei na exposição de artes em que ganhei meu retrato desenhado por ela.
Nos atendimentos que promovemos pelo fórum há um plano de ação que prevê contatos contínuos, em que vamos nos desligando dos atendidos de forma paulatina, à medida em que há avaliação positiva e melhora.
Juliana já estava com alta de nossos encaminhamentos quando voltou a me procurar pelo WhatsApp muitos meses depois. Relatou que teve uma recaída, sintomas de ansiedade haviam retornado. Além disso, a saúde do município havia espaçado seus atendimentos para poder incluir novos pacientes: “eu gostaria que voltassem a ser semanais as consultas doutor Carlos”.
Procurei uma de nossas psicólogas parceiras para que pudesse seguir com atendimento em seu consultório de forma particular, semanalmente, mas sem custo: “Deixa comigo doutor Carlos, ela pode começar hoje mesmo”.
O feedback sobre os novos atendimentos não poderia ser melhor: “Boa tarde doutor. Fui na psicóloga que você indicou hoje, eu amei ela, me senti superconfortável. Não tenho nem palavras suficientes para expressar a gratidão que eu sinto pelo senhor. Estou bem melhor, não tive mais crises”.
Passado um tempo maior sem notícias chamei Juliana novamente. “Tudo tranquilo, doutor. Estou estudando bastante, desenhando muito” me tranquilizou.
E continuou a seguir: “A psicóloga me ajudou muito a refletir sobre minha vida. Eu comecei a ver o caminho que eu não estava enxergando. Eu tenho um destino pré-determinado com a arte. Eu contei na sessão com a psicóloga sobre minha preocupação com a faculdade. Ela me puxou pela mãozinha e me mostrou o caminho tão claro que eu não acredito até agora, tão simples e eu sofrendo por causa de minha imaginação. Hoje eu entrei em contato com a faculdade e me apareceu uma oportunidade tão maravilhosa. Fiz a matrícula no curso de artes visuais. Eu vou fazer faculdade doutor. Eu perdi o medo das oportunidades. E vai dar tudo certo”.
E como se não bastasse, causando-me grande comoção Juliana completou: “Seu atendimento mudou minha vida, iluminou caminhos e me fez sentir capaz de seguir meus sonhos! A psicóloga está me ajudando muito, principalmente na questão da autoestima e coragem, eu consegui um emprego e estou trabalhando aqui no município, estou aprendendo aos poucos e gostando bastante da experiência. Jamais imaginaria a Juliana de 3 anos atrás assim kkkk tudo isso graças a sua ajuda! Eu estou tão feliz! Estou começando a faculdade doutor. O Brasil (e o mundo) ganha mais uma ilustradora! Me empolguei doutor kkk me perdoe. Eu fiz até um empadão de frango para comemorar esse dia histórico kkkk”.
*o nome aqui utilizado é fictício.
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