Crônica: “O advogado estava deitado de bruços no chão”
Em certas fases da vida inevitavelmente exercemos papéis conforme o local que frequentamos, atuando como verdadeiros personagens, incorporando, enaltecendo ou encobrindo características pessoais. Não raro calculamos de forma mais cautelosa as falas e comportamentos, especialmente quando estamos em ambiente diferente, conhecendo pessoas vinculadas a um novo relacionamento afetivo, por exemplo, e não raro até mesmo na presença de familiares.
Profissionalmente isso também por vezes acontece. Há pessoas que agem e se manifestam de forma bastante distinta quando do exercício do seu trabalho, “relaxando” e até mesmo desincorporando a forma de atuar que usualmente o fazem no local de emprego.
É possível ao Juiz de Direito “desligar” da função quando sai do fórum e volta para casa?
Quase vinte anos atrás não havia plantão aos finais de semana. Usualmente situações que corriqueiramente chegam ao Poder Judiciário aguardavam o passar do sábado e domingo, unicamente sendo levadas ao fórum segunda-feira, no início do expediente. Somente muito pontualmente alguma questão mais extrema e muito urgente chegava ao juiz fora do horário do expediente, cabendo muito mais ao bom-senso do magistrado atender de forma emergencial. Ainda assim, como não havia ainda rede de telefone celular funcionando, nem mesmo encontrar o juiz da comarca em finais de semana era tarefa fácil.
Nessa época eu passava por situação de ameaças em razão do atendimento de alguns processos criminais no fórum. Estas chegavam ao meu conhecimento ou da equipe por meio de bilhetes sem assinatura ou ligações também anônimas no telefone fixo do fórum. Em uma noite o terreno da casa onde morava foi invadido e alguns recados nada amistosos foram deixados no muro. Após reunião com as polícias civil e militar, com apoio do Tribunal de Justiça, medidas de segurança e prevenção foram tomadas.
Em um domingo, próximo do fim da tarde, estava em casa quando ouvi a campainha tocar. Estava poucas semanas na comarca, e não conhecia quase ninguém ainda na cidade. Deixei de atender o chamado pensando se tratar de algum engano.
Mas a campainha continuava sendo tocada insistentemente e acabei seguindo a orientação da reunião de segurança, ligando para o posto da polícia militar que ficava próximo de minha residência. Poucos minutos, após ouvi a sirene da viatura se aproximando, e quando a luz do giroflex indicava que a polícia já havia abordado quem ali estava, dirigi-me até a frente da casa.
Dois policiais militares, um deles com a pistola nas mãos, em posição e segurança na abordagem, e logo na sua frente, exatamente na porta da casa, um senhor deitado de bruços, com o rosto no chão, e as mãos para trás. Estava de chinelos e bermuda, sem camisa. Em alta voz pedia assustado: “não atira policial, eu estou trabalhando, sou o João, advogado, preciso falar com o juiz”.
Eu nunca havia sido procurado antes fora do horário do expediente forense, menos ainda em um domingo pela tarde, na minha própria casa. Muitos pedidos de escusas mútuos dos policiais e do advogado depois, expliquei ao Dr. João, advogado, também me escusando, sobre as ameaças que estava sofrendo, e os cuidados que seguia por recomendação dos agentes de segurança. Somente então Dr. João se levantou do chão, arrumou os cabelos sobre a testa, secou o suor daquela quente tarde de verão, e se dirigiu a mim: “Excelência, meu cliente sofreu uma prisão irregular hoje pela manhã, preciso protocolar um pedido de relaxamento do fragrante”.
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Explanei ao advogado que poderia ter procurado o escrivão ou até mesmo me telefonado. Mas a verdade é que na época ninguém nem mesmo sabia o número de meu telefone.
Vinte anos depois a situação é muito diferente. Até mesmo pelo tempo que estou na comarca, e pela incontável quantidade de audiências que já realizei e processos já julgados, muita gente me aborda nas ruas, na farmácia, na fila do buffet no restaurante na hora do almoço: “doutor, minha advogada já fez o pedido, e me falou que já está na sua mesa, só falta agora sua decisão”.
Além disso, minhas redes sociais são abertas, lá constam meu número de celular, e se não deixar o aparelho de lado nos finais de semana em que o plantão não é meu, irremediavelmente passo a folga inteira respondendo quem me procura.
Certa vez entrava apressadamente em um supermercado puxando na mente a lista de compras do que faltava em casa para nada esquecer, quando já no primeiro corredor ouço uma voz ainda distante: “Doutor Carlos!”
Ao se aproximar o advogado após rápida corrida para chegar até mim puxava o ar dos pulmões, mas já emendando: “eu iria passar no fórum, que bom te encontrar aqui. Dr. Carlos. Lembra que comentei na audiência semana passada sobre o mestrado que estou começando. Queremos o senhor nessa turma doutor.”
Meu pensamento ainda estava na lista: “pão, café, leite, ovos, sabão em pó, detergente, …” quando o advogado seguiu: “doutor, esse curso é um verdadeiro achado, as aulas são presencial mês sim, mês não, e também não precisa ter conhecimento em outro idioma. Se não tiver domínio de língua estrangeira ‘da para deixar’ (sic) para fazer o teste só no final dos créditos. E o pessoal comentou que quando chega no final é possível dizer que já fez o teste de idioma no começo, e fica por assim mesmo”.
“Que bom ter essa flexibilidade doutor”, fingi não entender a aparente fraude no tal do mestrado, enquanto já puxava na prateleira em frente o litro de “kiboa” e colocava no carrinho.
Certa vez fui parado em uma blitz de trânsito, e enquanto o policial militar se aproximava puxei a carteira de habilitação da carteira: “não precisa não doutor, está tudo regular né? Doutor, eu parei porque vi que era o senhor, será que é possível dar uma atenção especial para meu processo lá no fórum?”
Na academia final do dia, havia começado a primeira série de exercícios, estava puxando o peso sobre os ombros, quando vi uma mulher se aproximando rapidamente ao lado. No meio do exercício ainda ela parou se colocando na frente do personal training e em alta voz reclamou: “Doutor, saiu sua decisão agora fim da tarde e não vou conseguir nem recorrer mais hoje. Com todo respeito ao senhor, mas é um absurdo”.
Também na academia, em data mais recente, lotada em uma segunda-feira início da noite, cumprimentei uma mulher que atendi em processo no fórum alguns dias antes. Ela e o ex-marido ambos profissionais da saúde bastante conhecidos na cidade. No seu processo havia concedido uma medida protetiva de afastamento do ex-companheiro e dos filhos em razão de violência doméstica.
Pouco depois veio até mim com expressão de desespero: “Doutor, ele acabou de entrar, ele sabe que não pode se aproximar de mim, eu tenho pavor dele, tenho medo eu ele faça alguma coisa, me ajuda por favor”. Interrompi o treino, fui até o outro lado onde ele estava: “Boa noite, tudo bem? Não sei se notou, mas sua ex-mulher está por aqui”.
“Doutor Carlos, isso é um absurdo, esse é meu horário, o doutor sempre me vê aqui. Ela fez isso para me provocar. Com todo respeito que tenho ao senhor e a sua decisão judicial, mas eu não vou sair”.
Voltei para o outro lado da academia, a mulher já estava aos prantos, pessoas próximas se aproximando sem entender o que acontecia. “Doutor Carlos, a medida é para ele não se aproximar de mim. Então se alguém tem que sair daqui é ele, ou vou chamar a polícia”.
Após mais algumas idas e vindas de uma ponta à outra da academia, ambos mais calmos, mas intransigentes quanto a quem deveria sair, consegui costurar um acordo. Enquanto a mulher estivesse em um dos lados da academia, o ex-marido iria fazer exercícios nos aparelhos do extremo oposto. Caso ela se deslocasse para o outro lado, caberia a ele usar os aparelhos mais distantes na outra ponta. Se descumprisse o acordado a polícia militar seria chamada para conduzi-lo pelo descumprimento da medida de afastamento. Felizmente tudo terminou bem aquela noite, e consegui terminar meus exercícios sem precisar acionar a polícia.
Em que pese muitas vezes não seja possível falar sobre os processos, seja porque nem sempre lembro de todos, e mesmo em razão da necessidade de manutenção da imparcialidade, há insistência de quem aborda, e com o tempo acostumei a sempre ao menos ouvir quem me chama.
Algumas semanas atrás terminava de tomar um café em uma padaria, já estava para levantar quando uma jovem se aproximou ao me reconhecer: “lembra de mim doutor? Posso me sentar aqui?” Eu não fazia ideia quem era, e antes mesmo que pudesse responder emendou: “doutor, eu estou com um problemão e somente o senhor pode me ajudar”.
Olhei para o balcão e pedi para a atendente: “Mais um café por favor”, quando a jovem prosseguiu: “Doutor, eu não sei se termino ou não meu namoro. Quero sua opinião. Vou contar do começo para entender melhor…”
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