Crônica: “Quero encontrar a minha mãe, juiz”
Das questões mais sensíveis que atendemos no fórum, certamente são as situações que envolvem as crianças afastadas de sua família de origem em razão de maus-tratos, violências, negligência e todo o tipo de descaso, que muitas vezes as colocam em situações de grave risco. Algumas delas depois de abrigadas nunca mais voltam para a família que as gerou. E apesar do histórico difícil e sensível que passam já com tenra idade, mais adiante a possibilidade de encontrar a nova família por meio da adoção nos enche de alento e esperança que o trabalho com afinco e responsabilidade sempre nos brinda com momentos únicos e muito especiais.
Certa vez, em visita que fiz a um abrigo de acolhidos me aproximei de Lucimara, já com 12 anos, idade bem difícil para encontrar uma família que a queira receber por meio da adoção, e ao longo da conversa, diante dos vários questionamentos, explicava a ela que a grande maioria de pais e mães adotivos procura bebês e crianças bem pequenas, pele, cabelos e olhos claros, e saudáveis, sem qualquer problema de saúde. Esclarecia ainda para Lucimara que nosso trabalho também tem a responsabilidade de explanar aos pretendentes que a adoção tardia (de crianças maiores) tem muitas vantagens, ainda identificar quem possui perfil para que o novo laço familiar seja estável e saudável para todos. “Não posso prometer que vamos conseguir encontrar sua família, Lucimara. Mas faremos tudo para que isso seja possível”.
Ao terminar o raciocínio Lucimara estava com olhar no horizonte, e com a pausa que fiz emendou: “Doutor Carlos, eu não tenho nenhum requisito para meus pais. Não precisa nem ser pai e mãe, pode ser um só. Não importa se forem ricos ou não, se brancos ou negros, se baixos ou altos, nem cor do cabelo ou dos olhos, se com problema de saúde ou não. Eu só queria uma família, doutor”.
Apesar do histórico difícil de muitas crianças e adolescentes acolhidos, nem todas elas convivem com a família de sangue antes. Algumas chegam para a adoção na chamada “entrega voluntária”, logo após o nascimento, inexistindo qualquer punição para os pais. Ao contrário, há chancela da lei, e a mãe não precisa indicar os motivos da entrega. Considera-se inclusive um ato de amor para com a criança, que por meio do sistema de justiça encontrará uma família que possa cuidá-la com carinho, segurança e todo afeto durante seu crescimento.
Maria Eduarda me procurou no Instagram. “Vi que é juiz em União da Vitória. Eu estou te seguindo há um tempinho, e estava criando coragem para te chamar”.
“Pois não, em que posso te ajudar?” respondi. “Eu não conheço União da Vitória, nunca passei por aí, mas a cidade faz parte de minha história pessoal. Eu moro no Estado de São Paulo com minha mãe, meu pai já é falecido, e sou muito grata a eles por tudo que conquistei em minha vida. Sou comissária de bordo (antigamente chamávamos aeromoça), fiz mestrado, falo cinco idiomas, e me considero uma pessoa realizada e feliz. Mas tem uma lacuna em minha vida que não me deixa respirar aliviada, e preciso resolver isso”.
Antes que terminasse de ler suas mensagens já sabia que falaria logo adiante sobre sua adoção. E não foi diferente: “Juiz, eu não sei quanto tempo está neste fórum, mas foi por aí que passou minha adoção. Eu gostaria de conhecer a parte de minha história que ainda não sei como foi. Quero ler os papéis e meu processo. Quero saber quem foi minha mãe”.
“Desculpe o atrapalho com as palavras” me disse, mas não havia atrapalho nenhum. “Eu estou escrevendo aqui às lagrimas, sob muita emoção. Eu me preparei para isso. Sei que minha mãe pode não estar mais viva. Talvez ainda esteja, mas não queira falar comigo. Eu sei que ela pode eventualmente não estar bem também, morando na rua, internada, eu estou preparada para tudo, Doutor Carlos. O que não posso mais é conviver com esse espaço vazio que preciso urgentemente preencher.”
Depois da minha procura, Maria Eduarda foi encaminhada para a conversa com nosso setor de Psicologia. Em que pese já tenha dito que se preparou para a busca que iniciaríamos, as situações sensíveis que possam estar envolvidas durante a história de vida antes da entrega para adoção demandam uma responsabilidade grande de nosso atendimento.
Naquela mesma tarde fomos até o arquivo buscar pelo nome de Maria Eduarda. Em muitos casos similares infelizmente nada encontramos, porque há um marco a criação do Estatuto da Criança e Adolescente, em 1999. O que ocorria antes dessa data não seguia um procedimento rigoroso de controle da retirada da família de origem e da entrega para adoção mais adiante. Também eram comuns (muito mais que nos dias de hoje) adoções que passavam longe do Poder Judiciário, já que a lei não era tão rigorosa. Nestas situações a busca é mais difícil, mas sempre nos propomos a auxiliar quem nos procura, correndo atrás de documentos nos cartórios de Registro Civil e hospitais da região.
Quando o estagiário Eduardo voltou do arquivo estava com largo sorriso no rosto. “Minha quase xará foi adotada aqui pelo fórum Doutor Carlos. Ela vai poder conhecer toda sua história”.
O passado de Maria Eduarda não trazia situações de violência ou qualquer fato desabonador de sua mãe biológica. Ao ler seu processo, eu verificara que a mãe de forma bastante decidida, após uma gravidez quando ainda muito jovem, solteira, à procura de trabalho, ainda estudando, optou por entregar o bebê para adoção. Chamou o Conselho Tutelar quando ainda estava na maternidade, contou que fazia a entrega para que a filha pudesse ter a oportunidade de viver bem e feliz, e que tinha certeza de que seu desejo seria atendido com muito cuidado e carinho.
Participei da chamada por vídeo com Maria Eduarda, que morava em grande cidade do interior de São Paulo, acompanhado do setor de Psicologia de nosso fórum. Na leitura de sua história seu olhar era de emoção e alegria. Ao terminarmos questionei-a se poderíamos seguir adiante, entregando-lhe cópias do processo e também no auxílio à busca de sua mãe biológica. “Sim doutor Carlos, inclusive, prefiro que a busca seja tentada primeiro por vocês. E se algum dia conseguirem encontrar ela, caso não queira falar comigo, que lhe digam que com tranquilidade vou respeitar sua decisão”.
Pois naquela mesma tarde, após rápido acesso a redes sociais, e uma mensagem via Facebook, conseguimos o WhatsApp da mãe biológica, chamada Mari Estela, que estava residindo no litoral de Santa Catarina, onde trabalhava em um pequeno comércio.
Nova chamada por vídeo, e agora estávamos eu e a estagiária de Psicologia diante de Mari Estela. A conversa também muito cuidadosamente planejada, porém não durou muito, pois poucos instantes após entender o motivo de nossa procura, a mãe também em choro de forte comoção deu sinal positivo para que fizéssemos a conversa da aproximação com sua filha, com quem ela havia se desligado mais de duas décadas atrás.
Avisamos Maria Eduarda que a conversa ocorreria no dia seguinte, para que ambas pudessem processar todas as novas informações de sua história pessoal. E o reencontro, também por vídeo, não poderia ser mais especial. Por mais que juízes e psicólogos que trabalham nos fóruns se preparem e se capacitem para não serem tomados pela emoção em todo e qualquer tipo de atendimento, foi inevitável controlar os sentimentos diante da tenra conversa: “Minha mãezinha, eu não acredito que te encontrei…”.
– “Minha filha, perdão por tudo”.
– “Não precisa pedir perdão por nada mãe. Estou bem de saúde. Fui muito bem cuidada durante toda minha vida. Eu amo meus pais, mas nunca deixei de te amar também. Eu oro por você todos os dias”.
Uma semana depois, na primeira folga que conseguiu na empresa aérea em que trabalhava, Maria Eduarda foi até a casa de sua mãe visitá-la. A casa fica em Itajaí, Santa Catarina, local onde passo o feriado enquanto escrevo a presente crônica. No barulho do estouro das ondas à minha frente, nesta tarde chuvosa, agradeço a Deus pelo reencontro de Maria Eduarda e Mari Estela, e agradeço pelo trabalho e missão que encontrei para minha vida.
*os nomes aqui utilizados são fictícios.
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