Crônica: “Sou amigo do Juiz”

Mal havia chegado em Bandeirantes, norte do Paraná, meu primeiro local de trabalho como juiz, e aparece um processo com um adolescente preso para atendimento. E já com uma audiência marcada para ouvi-lo no dia seguinte. Adolescentes (entre 12 e 18 anos) também podem ser presos quando praticam crimes mais graves. Os termos na lei são outros, mas na prática é prisão mesmo, afastado de sua casa, família, amigos, escola.

Esperava na sala de audiências ao lado do Promotor de Justiça, quando chegou o “menor” escoltado por dois policiais militares armados. Na sala também estavam seu advogado e o estagiário que preparava toda a documentação. Perguntei se sua mãe viria, ele disse que não: “Nossa casa fica no interior,  longe daqui, não tem ônibus nesse horário”.

Gabriel tinha 15 anos de idade, mas sua aparência era de 11 ou 12 anos. O crime bastante grave, daí a prisão. Como quase todo caso envolvendo adolescente sempre há uma série de fatores que influenciam muito na prática de crimes, como a pobreza sistêmica, o atraso ou abandono escolar, a desestruturação e a violência familiar, a proximidade com as drogas já desde muito cedo. Na audiência Gabriel contou que já havia abandonado a escola há mais de 3 anos. “Às vezes eu apareço quando não tem comida em casa porque a merenda é muito boa” disse ele. Contou sobre a ausência paterna desde o nascimento, do irmão adulto que estava preso em Londrina, da mãe que trabalhava no corte de cana, do uso de maconha e “cola”. Falou também sobre o crime, dizendo que estava “chapado”, e que foi “na onda dos amigos”. Ao final, enquanto o estagiário imprimia a papelada perguntei o que faria quando saísse da prisão, se pretendia voltar a estudar, questionei também para qual time de futebol torcia, o que ele gostava de fazer. Ao final com a cabeça baixa perguntou, certamente já sabendo a resposta: “o Juiz não vai me  soltar hoje, né?” Com todos os documentos assinados voltou ele em companhia da Polícia Militar para a Delegacia de Polícia.

Algumas semanas depois a outra audiência de seu processo foi realizada pela juíza titular. No final da tarde, o escrivão veio até minha sala contar que Gabriel já chegou ao Fórum  dizendo “eu sou amigo do Juiz!”

“Que atrevimento, que coragem!”. Pensei naquele dia.

Era início do ano de 2003. A audiência do “menor” Gabriel foi uma das primeiras que realizei depois da posse no cargo de juiz. Antes havia durante os cinco anos da faculdade realizado estágio em ambientes jurídicos de toda espécie, advogado em alguns processos, e trabalhado em um cargo concursado na assessoria de recursos do Tribunal, onde também secretariava sessões de julgamentos. Porém, o que acontece numa sala de audiências de um fórum, particularmente na função daquele que vai decidir o destino das pessoas que ali se apresentam – se estão falando a verdade ou mentindo, se ficarão presos ou não, por quanto tempo… – nada é nem mesmo parecido.

E a responsabilidade da função certamente está no mesmo grau de importância do tratamento cordial e respeitoso com todos que sentam no banco da sala de audiências (ou aparecem na tela do computador no atual sistema de audiências virtuais).

Somente algum tempo depois entendi o que Gabriel quis dizer quando afirmou que era meu amigo.

A forma como são tratadas as pessoas quando precisam de serviços públicos nem sempre é acolhedora. Mesmo nos ambientes em que deveriam ser compreendidos com olhar de maior empatia como na escola, em um atendimento social ou de saúde, recebemos todos os dias relatos bastante perturbadores.

Assim, ainda que tomado no momento por apreensão e angústia, o fato do juiz lhe estender a mão, ouvi-lo com atenção e compaixão, criaram no íntimo de Gabriel um elo de confiança, traduzido na sua simplicidade e humildade pelo significado de “amizade”.

Quase 20 anos depois da audiência de Gabriel recebo todos os dias mensagens dos “amigos”  dos processos do Fórum. Com todo cuidado necessário à manutenção da imparcialidade não deixo de atender ninguém, mesmo fora do horário de trabalho, pessoalmente ou pelas redes sociais, respondendo assim que possível. Muitos “amigos” contam os problemas que vêm passando, mas também sobre as novidades da escola, sobre o primeiro emprego, sobre a casa, a família.

O elo de “amizade” e confiança na figura da autoridade do juiz de seu processo configura o termo jurídico que cunhei de “paternidade (ou maternidade) institucional”. Mas este é tema para outro texto.

Não mais acompanhei o processo de Gabriel, e não sei dizer como seguiu sua vida, apenas que foi solto alguns meses depois. Mas muito me alegra vivenciar todos os dias inúmeros “amigos” como Gabriel recebendo e encontrando oportunidades, assim como promover medidas e projetos de cidadania para que possam continuar estudando e afastar-se (ou evitar que se aproximem) de tudo aquilo que os leva a responder um processo ou à prisão tão cedo.

*Os nomes aqui utilizados são fictícios

Crônica: "Sou amigo do Juiz"

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória – Paraná. Foto: Dálie Felberg/Alep

 

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