“Doutor Carlos, pode me passar o número dos candidatos que o senhor confia?”

“Doutor Carlos, pode me passar o número dos candidatos que o senhor confia?” A pergunta foi feita ao final de minha palestra em um colégio estadual na última semana. A escola estava cheia. A senhora já idosa, avó de dois alunos, de quem tem a guarda, assistiu atentamente a minha fala sobre a importância do estudo, sobre o dever dos responsáveis legais acompanhar proximamente o cotidiano escolar, sobre violências que alunos são vítimas, sobre bullying, violência contra a mulher, racismo e outros temas. No encerramento lembrei da proximidade da eleição, e da importância do voto, convocando todos para não deixar de participar da escolha de nossos representantes no próximo domingo.

Nas falas públicas procuro estabelecer uma abordagem com viés pedagógico de acordo com o perfil daqueles que me ouvem, possibilitando criar um vínculo com os presentes, aumentando a chance de adesão às propostas e sugestões que faço. Também de forma a abrir espaço de confiança com o “estender a mão” para auxiliar quem passa por alguma situação de vulnerabilidade, violência e sofrimento. O trabalho nesse formato já é realizado há muitos anos, e foi aperfeiçoado com a criação no fórum local do CEJUSC, setor de cidadania, que tem como objetivo a prevenção à judicialização, ou seja, evita o advento de processos judiciais penosos e morosos sempre que possível, ainda auxilia pessoas a percorrer o árduo caminho policial e judicial, quando inevitável, dando um pouco de alento e mesmo segurança.

Costumo dizer que caminhamos juntamente com aqueles que passam dificuldades e nos procuram, o que certamente empodera e fortalece os atendidos. O resultado, independente do problema envolvendo cada pessoa (ou mesmo aqueles que não nos procuram e apenas acompanham as palestras), especialmente diante da presença pessoal e da figura da autoridade do juiz de direito, é a criação de um vínculo de forte confiança. Ao ponto inclusive da avó dos alunos pedir a indicação dos candidatos (a deputado, esclareceu a seguir) que deva ela votar nas eleições que se aproximam, conforme “minha escolha”.

A situação provoca muitas reflexões. Primeiro a importância de articulação não apenas do Poder Judiciário, mas das instituições de forma geral, para fomentar participação mais ativa e efetiva do eleitorado nas eleições, inclusive com melhor capacitação do eleitor sobre o processo eleitoral e a representação política, de forma que se possa compreender a importância do voto, da pesquisa dos candidatos e suas plataformas de trabalho, seu histórico político e pessoal.

É possível e recomendável que as pessoas também criem vínculos positivos com os candidatos eleitos, representantes da coletividade, acompanhando seu trabalho ao longo do mandato, apresentando sugestões, pautas e interesses de cada comunidade, cobrando atuação em conformidade com as propostas apresentadas durante a campanha, e com os anseios especialmente de públicos vulneráveis.

É sabido que as políticas públicas sociais, de saúde, educação e de segurança pública afetam de forma bastante significativa a vida de todos, e são pelos representantes eleitos deliberadas ao longo do exercício da sua função política no decorrer do mandato, seja pela (re)formulação das leis, seja pelas escolhas dos destinos dos recursos públicos advindo do pagamento de impostos.

Durante o período de propaganda política até o dia da votação, cabe à justiça eleitoral para além de organizar as eleições para que ocorram de forma regular e transparente, promover a isonomia entre os candidatos, por meio das decisões judiciais. Neste caso, vale destacar que a intervenção da justiça ocorre apenas quando procurada acerca de denúncias da prática de condutas de corrupção, ou da realização de propaganda irregular, que possam induzir o eleitor em erro ou desequilibrar a disputa.

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No primeiro caso, tem-se como exemplos a distribuição de combustível, cestas básicas ou materiais de construção, ou a promessa de qualquer outro favorecimento em troca de votos. Na segunda situação podem ser mencionadas a “boca de urna”, propaganda irregular verificada no dia das eleições, ainda a utilização de propaganda que confunda o eleitor, como as chamadas “fake news”, mensagens falsas sobre outros candidatos, promessas impossíveis de serem cumpridas, ou ainda sobre fatos ligados à própria eleição, como a indução de dúvida sobre a correção das urnas eletrônicas.

Muitos anos atrás recém havia chegado em uma comarca bem distante de União da Vitória, quando me fora relatado que seria “tradição” nas cidades da região na realização dos showmícios (hoje não mais permitidos), a distribuição de comida e bebida. Assim, antes do início do período de campanha em reunião com todos os grupos políticos locais, ressaltei sobre a ilicitude de tais condutas, além das possíveis punições.

Infelizmente a orientação não foi observada, e lá estavam nos comícios realizados barracas muito bem organizadas, com farta distribuição de lanches e bebidas, alcoólicas inclusive.

Tudo foi documentado e mais adiante ajuizadas várias ações junto à justiça eleitoral, o que causou uma série de processos que ao final impediram candidatos eleitos de assumir seus cargos. Mesmo candidatos não eleitos ao receber a sentença de condenação foram afastados da vida pública, permanecendo por anos inelegíveis.

Neste mesmo pleito me reportaram que nos locais de votação sempre fora comum na região intensa movimentação de pessoas no dia da eleição, trajadas com camisetas, bonés, usos de bandeiras e outros adereços, fazendo aglomeração, visando influenciar o eleitor. A conduta, claramente configuradora do crime de “boca de urna”, também levou-me a orientar e advertir os candidatos e partidos a respeito em reunião no fórum eleitoral. Da mesma forma a providência não resultou em mudança automática de comportamento, contudo.

No dia da eleição saí em companhia da Polícia Militar para circular ainda de madrugada pelos locais de votação, e já cedo se formavam vários grupos próximos do portão dos colégios. Segundo os próprios cabos eleitorais, a distribuição de metade do valor combinado ocorrera naquela noite nos próprios comitês partidários, e de lá se deslocavam grupos de 5, 10, por vezes mais de 20 pessoas em caminhada rumo aos locais de votação. A promessa era do pagamento da outra metade do valor ao final do dia. Todos receberiam o lanche na hora do almoço.

Quando fizemos a primeira ronda pelos colégios a Polícia Militar ao passar pelos grupos orientava: “voltem para casa, por favor. Vamos combinar de retornar para cá somente quando do início do horário da votação. Quem está trajado com propaganda dos candidatos deve seguir isoladamente, ou apenas com os familiares, para votar”.

“Não é possível aglomerar!” ressaltavam os policiais.

Com o alerta da polícia os grupos rapidamente se espalhavam pelas ruas próximas, mas poucos minutos após já estavam juntos novamente. Alguns deles cantavam em alta voz os “jingles” da campanha, outros entonavam gritos de guerra contra os “adversários”.

Com a insistência não restou outra alternativa. Nas passagens seguintes pelos locais já se iniciava o horário de votação, em que verificamos que lá continuavam reunidos, em grupos cada vez maiores. Quem chegava no colégio para votar precisava seguir verdadeira “via crucis”, passando no meio da multidão.

Solicitei que os ônibus requisitados para as eleições se posicionassem próximos, e aos poucos os policiais militares conduziam os praticantes da boca de urna para o interior dos veículos, ressaltando a “voz de prisão” aos que praticavam a irregularidade. Ainda assim nas primeiras abordagens ocorria verdadeira festa. Como se estivessem seguindo para um jogo de futebol ao adentrar nos ônibus, os cabos eleitorais corriam para as janelas, balançavam as bandeiras e continuavam a bradar gritos pelos seus candidatos.

Quando se percebeu o que realmente estava acontecendo, que havia o “risco” de não receber a metade do valor combinado ao final do dia, talvez até mesmo de não mais conseguir votar, foi uma correria geral para não mais “entrar nos ônibus” da justiça eleitoral.

Um senhor idoso, ao se aproximar de mim, escoltado por um policial junto a um grupo uniformizado, ao me reconhecer perguntou: “Juiz, para onde estamos sendo levados? Para a delegacia de polícia?”

– “Para o ginásio da cidade” respondi. “Lá será formalizada a documentação pela polícia”, completei. De pronto o senhor questionou: “e nosso almoço agora será levado para lá também?”

 

Ocorreram mais de 300 prisões naquele dia. No levantamento do TSE ao final daquelas eleições ficamos na segunda colocação em todo o país em relação ao número de pessoas detidas praticando boca de urna.

Esse foi apenas o ato final de um período eleitoral bastante tenso, que envolveu ameaças ao Juiz, ao Promotor de Justiça e ao Delegado de Polícia da comarca. O fórum foi vandalizado em uma madrugada, quando se tentou atear fogo ao prédio. Muitas ligações anônimas detalhavam inclusive a forma como seríamos abordados. Em uma delas, cumprida poucos dias depois, o terreno da casa onde eu morava foi invadida no período da noite. Com o disparo do alarme foi acionada a polícia, que somente chegou pouco depois da fuga dos invasores. Passamos a circular com escolta.

Mesmo com tantas dificuldades e obstáculos o trabalho surtiu efeito. Além dos candidatos que foram afastados da vida política por meio das sentenças judiciais, situações como as relatadas nunca mais foram verificadas na comarca.

Na eleição municipal seguinte já não trabalhava mais na região, quando recebi contato da escrivã: “Doutor Carlos, o que o senhor e o Promotor fizeram aqui ficou marcado para sempre. Os candidatos fizeram a campanha ‘pisando em ovos’. Ninguém mais quis correr o risco de ganhar e não poder assumir o cargo ou ser cassado depois. Pense na tranquilidade no dia da votação”.

Permanece o desejo de que possamos todos, agentes públicos e a sociedade, continuar a buscar a evolução do processo eleitoral brasileiro. Que possamos por meio das eleições e tudo que envolve o sistema político representativo avançar não apenas na manutenção e estabilidade do regime democrático, mas que com isso, especialmente, consigamos diminuir as desigualdades sociais, evitar retrocessos, e criar condições e mecanismos para o desenvolvimento humano digno em nossa sociedade.

Neste domingo, sem boca de urna, de forma tranquila e ordeira, como é “tradição” em nossa região, com a pesquisa prévia dos candidatos, com a anotação do número dos escolhidos em uma “cola”, com a pesquisa do local e sessão de votação no “site” do TRE (tre-pr.gov.br) antes de sair de casa, com a posse de documento oficial com foto, que possamos todos cumprir com o dever do voto consciente. Porque o voto continua a ser a melhor defesa do cidadão em uma democracia.

Carlos Mattioli é juiz da criança, adolescente, família e cidadania em União da Vitória (PR)

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