Conquista de IG pelos Vinhos de Bituruna abre caminho para vitivinicultura paranaense
Uma uva com casca resistente e rosada, de cacho compacto, com bagas pequenas e que apresenta baixa produção nos parreirais. A descrição mais comum da uva denominada Casca Dura (ou Martha), poderia fazer com que muitos produtores passassem longe dessa cultivar e, em grande parte do país, a premissa se mostra verdadeira. Exceto em Bituruna.
É na pequena cidade paranaense que a variedade encontrou o clima e o solo perfeito para se desenvolver. Foi trazida do Rio Grande do Sul para o Paraná na década de 30 por imigrantes italianos, que cultivavam a uva para consumo próprio devido ao seu sabor agradável. A produção, que em outros locais era pequena, em Bituruna se mostrou próspera. Com isso, não demorou muito para que a Casca Dura começasse a ser utilizada na produção de vinhos, ainda de forma artesanal.
A tradição da vitivinicultura foi passada de geração em geração e, hoje, Bituruna é a primeira cidade do Paraná a obter um selo de Indicação Geográfica (IG) pela produção de vinhos. A confirmação da conquista da indicação de procedência Vinhos de Bituruna veio em outubro de 2022, três anos após o início do processo no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi).
O pedido foi formalizado pela Associação dos Produtores de Uva e Vinho do Município de Bituruna (Apruvibi), entidade formada por representantes de quatro vinícolas produtoras da variedade Casca Dura no município: Sanber, Bertoletti, Di Sandi e Dell Mont. O selo contempla o vinho Bordô, além do Casca Dura.
Da produção familiar à profissionalização
As famílias Sandi e Bertoletti estão entre as responsáveis por plantar as primeiras mudas de uva e produzir os primeiros litros de vinho em Bituruna. “É uma tradição familiar que vem de longa data”, conta Adilson Jerry Sandi, que atualmente administra a vinícola Di Sandi ao lado dos irmãos Everton e Cris. Comprovando a declaração, no parreiral ao lado da vinícola, Adilson mostra com carinho uma muda de quase 100 anos, plantada por seus avós em 1933.
No início, a produção de vinhos – entre eles o Casca Dura – nas quatro vinícolas biturunenses era voltada para consumo das famílias e de amigos. Com o tempo, o produto começou a ser comercializado, primeiro em galões de madeira feitos pelos próprios compradores, depois vieram os tradicionais garrafões de vidro. Na vinícola Di Sandi, o vinho Casca Dura começou a ser comercializado na década de 80, ainda sem marca definida. Em 2002, percebendo o potencial do produto, a vinícola ampliou a produção da uva Martha e passou a utilizar o nome Casca Dura nos vinhos derivados da fruta.
Foi também no começo dos anos 2000 que a produção dos vinhos de Bituruna entrou em uma nova fase. Em 2001, produtores se uniram à administração municipal e realizaram a primeira edição da Festa do Vinho, evento que marcou o início da profissionalização do vinho biturunense.
A enóloga da vinícola Sanber e presidente da Apruvibi, Michele Bertoletti Rosso, conta que, durante a primeira edição da Festa do Vinho, vários enólogos foram convidados para conversar com os produtores e realizar diagnósticos para auxiliar as vinícolas a qualificar sua produção. “Um enólogo muito tradicional nos disse que era para arrumarmos outra coisa para fazer porque os vinhos de Bituruna jamais iriam alcançar a qualidade. Nós éramos [produtores de] vinho de garrafão e isso nunca iria dar dinheiro”, relembra.
Na mesma época, uma comitiva da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) de Bento Gonçalves esteve em Bituruna e deu um diagnóstico diferente sobre os vinhos da cidade, identificando um potencial na produção biturunense. Os produtores preferiram acreditar na visão da Embrapa.
Em 2010, Michele resolveu cursar enologia. O único curso do país, até então, ficava exatamente em Bento Gonçalves. Michele se mudou para a cidade, mas sempre com a ideia de retornar para Bituruna e colocar em prática tudo o que aprendesse em seu curso. Enquanto estudava, trabalhava a distância para a vinícola de sua família.
No mesmo período, as demais vinícolas do município continuavam a se profissionalizar, e o vinho Casca Dura chamava cada vez mais atenção, mas a razão do sucesso da bebida em questão ainda era desconhecida pelos próprios produtores.
Em Bento Gonçalves, Michele começou a procurar detalhes sobre a variedade da uva. Conversou com um produtor local, que mantinha a uva Martha em seu parreiral, mas que não a utilizava para a produção de vinhos pois, segundo ele, a uva degradava antes de ser colhida, fato que não se repetia em Bituruna. A baixa produção da uva Martha era de conhecimento dos primeiros produtores de uva de Bituruna, que trouxeram a variedade ao município por engano. A princípio, a ideia foi cortar as mudas mas, ao perceberem que naquele solo a uva conseguiu vingar, mantiveram o cultivo.
Segundo Michele, Bituruna tem as características ideais para que a uva Casca Dura se desenvolva. A altitude de quase 1.000 metros acima do nível do mar, combinado com verões de dias quentes e noites amenas e um solo único auxiliam a maturação da fruta, e permite que as vinícolas biturunenses tenham um produto exclusivo, digno de prêmios, como os conquistados pelo Casca Dura Tozetti, que por duas vezes foi medalha de ouro no Wines of Brazil Awards.
Oficialmente, só existe em Bituruna
Com a conquista da IG, os produtores dos Vinhos de Bituruna podem afirmar que colocam no mercado uma bebida com características que não são encontradas em nenhum outro vinho do Brasil. E, apesar de o selo contemplar duas variedades de uvas, a intenção das vinícolas é de dar maior destaque para o vinho Casca Dura, justamente por seu ineditismo no país.
Contudo, o direito de uso do selo não é permanente. Todos os anos, de agora em diante, as quatro vinícolas precisarão passar por vistorias, a cada safra, para atestar se a produção está seguindo o caderno de especificações técnicas, se a rastreabilidade está correta, e se é possível afirmar que a uva usada na produção do vinho foi plantada em Bituruna. O processo é individual, ou seja, uma vinícola pode perder o direito de uso do selo sem prejudicar as demais.
Os vinhos Bordô e Casca Dura produzidos em Bituruna terão, em breve, um QR Code em suas embalagens, identificando a data da poda da uva, data da colheita, processo de industrialização e engarrafamento. “Com a Identificação Geográfica fica comprovado que nós temos regras de produção, que nós monitoramos para que o vinho de Bituruna tenha uma qualidade diferenciada e sempre mantenha um padrão”, explica o enólogo da vinícola Bertoletti e presidente da Associação dos Vitivinicultores do Paraná (Vinopar), Claudinei Bertoletti.
Para Deonilson Sandi, da vinícola Dell Mont, a procura pelo vinho típico de Bituruna, que vem aumentando há cerca de dez anos, avançará ainda mais por conta da conquista do selo. “Isso aí é uma semente, mas vai despertar uma curiosidade muito grande nas pessoas”.
A ideia dos produtores, agora, é de buscar um selo de Denominação de Origem para dar ainda mais respaldo a afirmação de que uva Casca Dura é um produto que só é encontrado em Bituruna. O processo é longo e exige estudos científicos para provar que as características presentes na uva biturunense não existem em nenhum outro lugar do mundo.
Potencial turístico
Os benefícios da IG não ficarão restritos aos produtores de vinho, apostam os membros da Apruvibi. Para os representantes das vinícolas, o selo será um atrativo para turistas. A intenção de transformar Bituruna em um ponto de parada essencial para os apreciadores de vinho já existe há muito tempo, e é perceptível logo na entrada da cidade, onde um enorme garrafão de vinho e um gigantesco cacho de uva dão as boas-vindas aos visitantes.
Hoje, além da Festa do Vinho, a cidade conta também com a Rota do Vinho, passeio em que os turistas podem conhecer as principais vinícolas bituruneses. E, por sua expressiva e tradicional produção da bebida, Bituruna também foi reconhecida, em 2020, como Capital Paranaense do Vinho após aprovação do projeto de lei nº478/2019 pela Assembléia Legislativa do Estado do Paraná (Alep).
A enóloga da vinícola Sanber aposta tanto no enoturismo de Bituruna que mantém em sua propriedade um museu voltado à bebida. A Casa Sanber pertencia aos avós de Michele, e conta um pouco da história da produção do vinho em Bituruna. As paredes da grande sala de jantar são decoradas com pinturas de cachos de uva. Em cima dos armários há uma coleção de garrafas de diferentes épocas, mostrando a evolução das embalagens de vinho. E no porão, que fica praticamente no subsolo, ainda é possível ver os equipamentos utilizados antigamente na fabricação da bebida, como enormes pipas de madeira para fermentação, feitas todas à mão por seus antepassados. “A economia do município gira bastante em torno de madeireiras, mas a partir de quando começou o reconhecimento do vinho, começou a movimentar a cidade turisticamente. Isso há bastante tempo. Não é um processo recente. [O vinho] viabilizou muitos restaurantes e hotéis. Hoje está faltando vaga de hotel em Bituruna”, comenta.
Mas o potencial turístico do vinho no Paraná não está restrito a Bituruna. Um levantamento feito pela Embrapa Uva e Vinho listou regiões paranaenses indicadas para o enoturismo, sendo elas as cidades de Marialva, Maringá, Colombo, São José dos Pinhais, Campo Largo, Piraquara, Toledo, além de Bituruna e do bairro Santa Felicidade, em Curitiba. Para Claudinei, a IG abrirá portas para as quase 70 vinícolas do estado e será uma prova da qualidade do vinho paranaense. “São várias vinícolas existentes no Paraná. Várias com vinhos premiados. A evolução do nosso vinho paranaense vem crescendo dia após dia. São concursos, premiações, e essa conquista do IG vem fortalecer toda a cadeia do vinho paranaense. Nós acreditamos muito forte nesse ideal e estamos buscando desenvolver a vitivinicultura dentro do estado do Paraná”.
Pensando no futuro
Segundo levantamento da Vinopar, em 2019 as vinícolas paranaenses processaram 668 toneladas de uvas viníferas. A expectativa para 2024 é de que esse número cresça 342%, passando para 2.959 toneladas. Atualmente, o Paraná é o quinto maior produtor de uva do país, sendo responsável por cerca de 5% da área produtiva da cultivar no Brasil, com quase 3.600 hectares de plantio. Em 2021, o Valor da Produção Agropecuária (VPB) da uva no estado foi de R$ 248 milhões. A uva vinífera gerou 31% desse montante.
O Paraná é responsável por cerca de 1% da produção de vinhos no país, mas existe possibilidade de alavancar esse número. O próprio estado já percebeu seu potencial para a vitivinicultura. Em 2019, o governo estadual lançou o programa Revitalização da Viticultura Paranaense (Revitis), que tem como intenção estimular a produção de uva e derivados. O programa já auxiliou inclusive as produções biturunenses. Até 2022, o Revitis havia entregue 15 mil mudas de uva bordô e R$158 mil em recursos para compra de equipamentos, beneficiando 43 produtores do município. No estado, até ano passado, foram assinados 31 convênios com prefeituras, resultando em investimentos de cerca de R$5,3 milhões na vitivinicultura paranaense, auxiliando diretamente 295 produtores.
O aumento do número de consumidores de vinho no país também é um atrativo para a vitivinicultura paranaense. Segundo levantamento feito pela Wine Intelligence – empresa especializada em estudos sobre o mercado do vinho – o Brasil dobrou o número de consumidores entre 2010 e 2020. Atualmente, cerca de 36% da população adulta desfruta da bebida ao menos uma vez por mês. O aumento no número de apreciadores da bebida se deve, entre outros fatores, à qualidade do vinho brasileiro. “Há alguns anos, vinícolas profissionais e inovadoras – tanto importadoras quanto produtoras domésticas – começaram a investir em produtos de boa qualidade e a utilizar tecnologias de última geração para construir diversos pontos de contato com seus consumidores”, informou no relatório o gerente de operações para o Brasil da Wine Intelligence, Rodrigo Lanari.
A produção de vinhos finos em Bituruna vai de encontro ao gosto mais refinado dos novos consumidores. A vinícola Sanber, inclusive, lançou no ano passado o vinho Ristretto, feito com uvas selecionadas e com tiragem baixa, com 1.300 garrafas numeradas. Michele descreve o vinho como um produto para poucos paladares e adegas. “É uma nova fase que estamos inaugurando, indo para a parte de produzir vinhos finos de alto padrão. Queremos buscar os consumidores mais exigentes. Mostrar um pouco daquele desafio que eu escutei quando eu era criança. Queremos conquistar os paladares do mundo, mostrando que Bituruna tem um diferencial e que temos condições de produzir um vinho de alto padrão para brigar com os grandões de dentro ou de fora do país”.
Outras vinícolas paranaenses também já estão sendo reconhecidas por sua produção de alto padrão. Em 2020, as vinícolas Franco Italiano e Araucária conquistaram o primeiro lugar na Grande Prova de Vinhos do Brasil pela sua produção de Cabernet Sauvignon. O Paradigma Roto Cabernet Sauvignon, também da vinícola Franco Italiano, recebeu em 2021 a medalha de bronze no Decanter World Wine Awards, que reconhece os melhores vinhos do mundo. A conquista da IG pelos Vinhos de Bituruna se mostra um grande passo para os vinhos do Paraná, abrindo caminho para uma jornada que promete ser cada vez mais promissora e digna de brindes.
+ Uma curiosidade ligada aos vinhos de Bituruna
A arte da Tanoaria
As quatro vinícolas membro da Apruvibi possuem ao menos uma pipa feita pelo tanoeiro Pedro Sandi. Atualmente com 80 anos, o morador do interior de Bituruna começou a produzir os barris para armazenagem de vinho aos 05 anos, seguindo uma tradição herdada por seu pai. A maior pipa produzida por Pedro está na vinícola Bertoletti, e possui capacidade para 16.250 litros. Foram necessárias quatro pessoas, trabalhando durante 15 dias para que o item ficasse pronto. “Não sei de onde arranquei a coragem para fazer”, brinca o tanoeiro.
Os 75 anos dedicados à tanoaria renderam algumas marcas físicas em Pedro, como o alojamento de um pedaço de ferro em um dedo de sua mão devido a um acidente de trabalho sofrido aos 12 anos. O item só foi tirado de seu corpo poucos anos atrás. Hoje em dia, a dificuldade para realizar o trabalho se encontra justamente nas mãos do tanoeiro, que doem devido a força feita durante vários anos para evitar que o martelo escapasse e caísse em seus pés enquanto produzia as pipas.
Muitas das máquinas utilizadas por Pedro foram feitas por ele mesmo. Na época em que começou a produzir as pipas, ainda não havia energia elétrica. Atualmente, só produz o item quando há pedidos. Pedro conta que cada pipa é única, e que para que funcionem ao seu propósito, precisam ser feitas com uma precisão milimétrica.
As tábuas que formam as pipas não são coladas, por isso precisam ser cortadas e lixadas todas no mesmo ângulo para que possam ser encaixadas umas nas outras e, com a pressão das argolas que as envolvem, não criem brechas que permitam o vazamento do líquido.
Hoje, Pedro é um dos poucos tanoeiros em atividade. A produção de pipas veio como um auxílio financeiro durante os períodos em que não podia trabalhar na lavoura. Perguntado se sempre gostou da carpintaria, Pedro é direto: “não, mas eu tinha que fazer alguma coisa na vida”.
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