Não adianta gritar e buzinar… Não ouço!
Veículos conduzidos por deficientes auditivos em Porto União serão identificados pelo símbolo internacional da surdez
Numa viagem de carro recente para o Uruguai, fiquei pensando que seria legal fazer uma viagem de carro sozinha contornando toda a América Latina. Fiquei mega empolgada com essa ideia por vários dias. Só esqueci de pensar nos perigos que eu correria em função da deficiência auditiva, e também que, em caso de acidentes ou problemas no carro, eu estaria ferrada. No trânsito, em várias ocasiões, não escutei a sirene das ambulâncias que vêm na minha direção, e me deparei com a ambulância atrás de mim desesperada pedindo passagem (a descarga de adrenalina causada pelo susto e a tremedeira posterior são de arrepiar os cabelos). A verdade é que dirigir requer SIM muita atenção auditiva do condutor. Perceber barulhos no veículo, ouvir sirenes, ouvir buzinas, apitos, enfim, uma série de sons que, se não forem ouvidos, podem colocar em risco não só a nossa vida, mas a vida de outras pessoas também. Acho esse assunto meio tenso. Se os aparelhos auditivos não me trouxessem de volta ao mundo dos sons, acho que abriria mão de dirigir.
O desabafo é um entre muitos que constam no blog Crônicas da Surdez, criado em 2007. Assinados por Paula Pfeifer e Luciano Moreira (otorrinolaringologista) os conteúdos são voltados para pessoas com deficiência auditiva e suas famílias. A gaúcha Paula Pfeifer, de 38 anos, nasceu ouvindo e começou a perder a audição na infância. O diagnóstico correto de surdez bilateral progressiva só chegou aos 16 anos, quando já estava no grau severo. Foi então que ela começou a usar aparelhos auditivos. Paula lidera hoje a maior comunidade voltada a pessoas com algum grau de surdez que são usuárias de tecnologias auditivas na América Latina, sendo mais de 18 mil pessoas em um grupo do Facebook.
Paula Pfeifer já sentiu na pele a insegurança de enfrentar um trânsito cheio de mal criações de outros motoristas. Em Porto União, a situação também foi compartilhada por Mateus Acácio Werle, que é deficiente auditivo e tesoureiro na Associação dos Surdos de Porto União da Vitória (Aspuva).
Segundo ele, o barulho frenético das buzinas em um trânsito caótico pode até ser comum para algumas pessoas, o que não é o caso da comunidade surda. Mateus conversou com a reportagem de O Comércio com a participação da interprete da Aspuva, Tatiane Aparecida Rocha. Na ocasião, explicaram que uma iniciativa da 1ª Companhia da Polícia Militar de Porto União (1ªCia/3ºBPM) promete ampliar a inclusão social da comunidade surda no Vale do Iguaçu.
“Juntamente com o presidente da Associação, o Wellington Jean Farias, participamos de uma reunião com o Sargento Claudinei sobre a colagem de adesivos em veículos conduzidos por pessoas surdas ou com audição reduzida. Compartilhamos com ele as nossas dificuldades no dia-a-dia e entendemos que a iniciativa terá resultados positivos no trânsito”.
De acordo com Mateus, a Aspuva conta hoje com 45 membros e cerca de 300 pessoas surdas associadas, com atendimento na Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos e da Fala (Apadaf).
“Essa articulação com a Polícia Militar de Santa Catarina será benéfica para reduzir a preocupação da comunidade surda durante a realização de abordagens policiais, ou as chamadas blitz. Através deste adesivo internacional de surdez, o policial já estará preparado para a interação com o condutor”, disse a intérprete em nome de Mateus.
Símbolo Internacional de Surdez
Procurado pela reportagem, o 3º Sargento da Polícia Militar de Porto União, Claudinei José Kziozek, comentou que a ação faz parte das atividades do setor de apoio humanitário da corporação. Disse que os membros da Aspuva (presidente e o tesoureiro) apoiam a ideia para que os veículos conduzidos por deficientes auditivos tenham identificação através do símbolo internacional da surdez.
A distribuição dos adesivos está prevista para acontecer ainda este mês.
“O Comandante da Polícia Militar, o Capitão Paulo Ricardo Galle, fará a mediação também com a polícia de União da Vitória para que haja uma parceria com o projeto. A intenção é iniciar a distribuição dos adesivos no Vale do Iguaçu e depois expandir para as cidades vizinhas”.
De acordo com o Sargento, a identificação dos veículos conduzidos por pessoas com deficiência auditiva garante a acessibilidade, além de a medida evitar que estes condutores sejam prejudicados no trânsito por não ouvirem as sirenes, os apitos dos agentes de trânsito e até as buzinas. A ação também carrega o objetivo de popularizar o símbolo internacional de surdez, a fim de que todos os motoristas saibam identificar uma pessoa surda ao volante. O material adesivo será fixado na parte traseira do veículo. Ele também pode ser colocado no vidro dianteiro para facilitar a identificação por agentes e demais autoridades de trânsito no momento da abordagem.
“O apoio humanitário conta com ações bastante abrangentes, como a oferta de cadeira de rodas, muletas e a distribuição de cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade social em Porto União”, diz.
Ainda, durante a reunião com os membros da Aspuva, o sargento Claudinei explicou sobre como usar o aplicativo PMSC Cidadão que auxilia para registro de ocorrências.
“O aplicativo pode ser baixado gratuitamente, cujo usuário pode enviar vídeos, fotos e áudios, que o ajudarão quando for preciso acionar a PMSC, sem necessidade de ligar para o 190. Também disponibilizamos à Aspuva um contato via whatsapp para ser utilizado para chamadas de emergência. Foi relatado também que o uso das máscaras por conta da pandemia dificulta a leitura labial entre o condutor surdo e o policial. Orientamos aos policiais para que em situações como essa, que a máscara seja retirada para facilitar a comunicação, porém mantendo todos os protocolos sanitários da Covid-19, como o distanciamento social”.
De momento, uma empresa de publicidade local doou à Polícia Militar de Porto União cerca de 50 adesivos com o símbolo internacional da surdez.
“Tanto o presidente da Aspuva, quanto o tesoureiro relataram dificuldades no trânsito enquanto condutores. Em contrapartida, ofertaram aos militares de Porto União aulas de Libras, a Língua Brasileira de Sinais, junto a Apadaf”, afirma.
Pessoas com deficiência auditiva podem obter a carteira de habilitação, uma vez que o principal sentido exigido para essa prática é a visão. Porém, é necessário que o motorista que não ouve utilize um adesivo no veículo com o símbolo internacional de surdez, uma exigência pouco conhecida. A Lei Nº 8.160/1991 trata do assunto.
Conforme o Art. 1º: “é obrigatória a colocação, de forma visível, do “Símbolo Internacional de Surdez” em todos os locais que possibilitem acesso, circulação e utilização por pessoas portadoras de deficiência auditiva, e em todos os serviços que forem postos à sua disposição ou que possibilitem o seu uso”.
A utilização do símbolo internacional da surdez ainda não é regulamentada por lei em Porto União.
Motoristas surdos no Brasil
Estudo feito em conjunto pelo Instituto Locomotiva e a Semana da Acessibilidade Surda em 2019, revela a existência no Brasil de 10,7 milhões de pessoas com deficiência auditiva. Desse total, 2,3 milhões têm deficiência severa. Já conforme dados de 2016, último levantamento realizado, o Brasil tem cerca de dez mil motoristas surdos e quem tem deficiência auditiva pode obter a carteira de habilitação, uma vez que o principal sentido exigido para essa prática é a visão.
Setembro Azul
É o mês da visibilidade da Comunidade Surda Brasileira, marcado por diversos eventos voltados para a conscientização sobre a acessibilidade e a comemoração das conquistas obtidas pela comunidade surda ao longo dos anos.
Serviço
Demais informações podem ser obtidas com o Sargento Claudinei, na rua Nilo Peçanha, nº 1435, no bairro São Pedro, em Porto União. Ou ainda pelo telefone (47) 3627-4165.
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