Opinião: “A delação de Mauro Cid”
A delação é o último recurso do réu que sem chances de absolvição, ou mesmo de penas leves, toma a decisão, sempre arriscada, de contar os detalhes do fato exige coragem, determinação e, principalmente, ruptura. Via de regra, todos os fatos relatados são criminosos e tiveram a cumplicidade do delator e precisam ser avaliados segundo esta lógica.
Por conta destas circunstâncias, todas elas são antecedidas de intenso interrogatório, em busca de contradições e novas narrativas, e da busca incessante de provas, sem estas, a delação são se consolida. Importante também frisar que a delação é um ato unilateral e, sempre, exige que a parte delatada receba todo o tratamento respeitoso que o rito jurídico preconiza.
Registradas as considerações, cumpre-nos avaliar a delação de Mauro Cid, ajudante de ordens e homem mais próximo de Bolsonaro durante o exercício do mandato. Em síntese, ele afirma que houve participação direta do presidente na articulação do golpe, com consulta direta aos chefes militares, confirma a minuta e o roteiro do golpe e entrega a cronologia dos fatos.
Sem paixões eleitorais, qualquer brasileiro isento sabe que não houve normalidade no processo político que resultou na vitória petista por dois milhões de votos no segundo turno ou, como se aventa agora, por decisão de 2 a 1 das forças armadas. Jair Bolsonaro, sem sutileza, que nunca foi parte do seu estilo, sempre vazou nas entrelinhas que a única alternativa das urnas era a sua vitória, resultado adverso só seria explicado por fraude nas urnas. Milhões de brasileiros, inundados por uma intensa campanha de fake news, comprou esta versão, nunca comprovada, nem mesmo pela auditoria militar, ressalvando que esta também não negou possibilidade de que isto ocorra.
As seguidas convocações do povo sempre tiveram implícito o recado de apoio das forças armadas, sendo o 7 de setembro de 22 algo inimaginável em um país democrata. Registre-se que havia um elemento elogiável neste cenário, o povo brasileiro, em grande número, fiel ao seu líder a quem se associava pelo ideário conservador e a implacável pauta de costumes que, excluídos os excessos, realmente esteve presente, mas era apenas coadjuvante em um espetáculo do qual nem imaginava qual fosse o roteiro.
Em seguida, a reunião com os embaixadores, feita diretamente pelo então presidente, onde, sem cerimônia, os informou de um cenário fantasioso, onde talvez a intervenção militar se fizesse necessária, cumprindo a cartilha básica do manual de golpes das republiquetas de banana. Qualquer cidadão com cultura e informação, sabe que nenhum golpe se sustenta sem apoio da comunidade internacional. Recapitulando; apoio popular, apoio militar e aprovação internacional, cumpridas estas etapas, está aberta a temporada do vale tudo.
Importante também registrar que nem mesmo o regime militar de 64, foi tão incisivo na incorporação dos seus ao comando dos cargos estratégicos. Estima-se que o governo anterior, convocou mais de 7 mil militares para participar de cargos de decisão, um envolvimento convincente que interferiu diretamente no currículo e no bolso destes selecionados, incluindo uma reforma da previdência paternalista, montando uma base inquestionável para garantir apoio à eventuais aventuras “fora das quatro linhas”.
Com o gabinete do ódio, atuando a pleno vapor, com intensidade e competência, aliando as pautas conservadoras com um irresponsável programa de armamento da população, a ideia de intervenção militar se tornou razoável ante a hipótese petista. Observe-se que a discussão não se refere à posse de armas, nos devidos limites da lei, mas as facilitações que permitiram que, naquele período, a população tivesse mais acesso à armamentos que nos quinze anos anteriores.
Roteiro irrepreensível; militares cooptados, urnas não confiáveis, população armada, busca de apoio internacional e desconfiança do processo eleitoral. Perfeito? Não.
Havia uma instituição, cercada da desconfiança do povo brasileiro, mas que cumpriu sua missão constitucional, o STF. Também me associo à indignação de tantas e tantas decisões no mínimo incompreendidas por todos nós, faço parte da grande maioria dos brasileiros que condena o processo de filtragem dos ministros, igualmente desaprovo sua quase perenidade e, sem nenhuma cultura jurídica que respalde minha opinião, estou entre aqueles que jogam no colo do STF a impunidade dos poderosos. Mas preciso ser justo; apenas dois fatores nos livraram do golpe; a postura firme dos ministros e a dignidade de grande parcela dos militares.
A sequência dos fatos aponta para a condenação de Jair Bolsonaro, pessoalmente espero que o bom senso indique o exílio como uma solução mais indicada que a prisão que, já assistimos este filme, transforma réus em mártires. Vejo também que a justiça joga com o tempo para preparar a opinião pública, conduzida por ambos os lados para uma polarização odiosa que só interessava ao PT e ao PL. Apresentar cada fato, quase em slow motion é também um importante elemento didático para evitar que a sensação de injustiça reacenda o ódio que ambos os lados estimularam no processo eleitoral.
Resta olhar à frente. Em artigo anterior, já avaliei que a direita, se permanecer unida, sai ainda maior, mas quem precisa realmente crescer é o jogo político brasileiro.
Praticamente ninguém escolheu ideias, projetos, quase nenhum eleitor discutiu plano dos presidenciáveis. Foi uma escolha pessoal entre dois líderes personalistas, criando uma espécie de caudilhismo tupiniquim, onde o debate eleitoral foi substituído por ruidosas torcidas organizadas, preocupadas em vencer o jogo, mas sem entender qual o real sentido do campeonato em disputa.
Não importa quem você prefere, Jair ou Lula, o fundamental é entender que o Brasil precisa muito mais que personagens políticos travestidos de salvadores da pátria.
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