Opinião: “Contra fatos não há narrativas”

Três fatos: Maduro é um governante autoritário, em seu país não há imprensa livre e sua Venezuela é uma ditadura. Não se trata de narrativas; são fatos. Contra fatos não há narrativas. Há argumentos. Narrativas não são fatos nem argumentos. Fatos são ocorrências concretas, evidentes. Argumentos são leituras dos fatos, não os negam, não fazem mágica com eles. Narrativas, sim, nos iludem fazendo o fato sumir de nossa mão para outro aparecer atrás de nossa orelha.

A evidente truculência do regime de Maduro, o cerceamento da liberdade de imprensa e o trancamento do regimento democrático em seu país são fatos, não narrativas. Lula aconselhar Maduro a caprichar na narrativa de que seu regime é democrático para convencer os brasileiros não está distante das condutas que levaram seus opositores a frequentarem os inquéritos das Fake News do Supremo Tribunal Federal (STF) e a “Procuradoria da Verdade” da Advocacia Geral da União (AGU), nos últimos tempos.

A fala pode ter tido a função política de arrancar aplausos de um eleitorado radical, mas é lamentável vindo de um governo que se fez criticando no adversário posturas semelhantes. Ora, não foram justamente a agressão aos fatos e as narrativas pirotécnicas para agradar radicais que a esquerda tanto condenou em Bolsonaro? Se o atual líder do país constrói narrativas oportunistas e ideológicas na frente dos microfones da imprensa, com que moral se solidariza com o Judiciário para vigiar e punir os que questionam o processo eleitoral, a eficácia de vacinas e as manifestações de 8 de Janeiro?

Como se justifica estarmos virando do avesso nossa legislação eleitoral, achatando a liberdade de expressão nas redes sociais e aprovando Projetos de Lei como o das Fake News, mesmo sabendo de seus princípios censórios, se para o presidente Lula o que é ou não a democracia em um país como a Venezuela depende apenas de uma boa caprichada na lábia?

Como dar de ombros para o ocorrido se, neste governo, e em seu time, estão os maiores expoentes das teorias jurídicas e políticas que pretendem regular a mídia, ajustar piadas, destruir livros e autores indigestos a minorias, definir quais estátuas devem viver ou ser queimadas, ensinar a linguagem neutra, em suma, reescrever a modernidade e seus costumes para que, em tese, vivamos em um mundo melhor?

Que mundo melhor é possível ser escrito a partir de narrativas e não de fatos? Se o governo pretende conduzir o Brasil pelo caminho das narrativas, devemos alertar o leitor que promoveremos a morte dos fatos, desarmaremos, com a força bruta do Estado, toda e qualquer narrativa de oposição e elevaremos as de interesse do governo e de seus parceiros à condição de verdade inviolável.

Este definitivamente não é um mundo melhor. Este sequer é um mundo. Não passa daquilo que a ave machadiana do conto “memórias do canário” enxergava, quando lhe perguntaram “o que é o mundo”. “O mundo, redarguiu o canário, com certo ar de professor, o mundo é uma loja de Belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira”.

André Marsiglia é advogado, professor e articulista. Pesquisador de temas relacionados à censura. Escreve semanalmente sobre Direito e Política para a Revista Crusoé, onde este artigo foi publicado originalmente. Twitter: @marsiglia_andre

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