Opinião: “Mia Couto tem toda a razão sobre as fake news”
Eu tenho uma birra danada de médicos que enxergam o paciente como se ele fosse apenas um fígado ou um baço. Não ligam para o ser humano à sua frente. Mas minha birra maior é em relação aos que enxergam o Direito como se ele estivesse desconectado do tecido social que com ele interage e, na verdade, o origina. Por isso, apesar de ser advogado, sempre preferi Literatura e Filosofia à leitura de manuais e textos estritamente jurídicos.
Nesse sentido, quando comecei a ler a entrevista que o escritor moçambicano Mia Couto concedeu, recentemente, ao site ijnet sobre jornalismo e fake news, tinha certeza de que vinha boa coisa pela frente. Não deu outra.
Em suma, o escritor explicou que as fake news são resultado do empobrecimento geral do debate de ideias, substituído pelo insulto. E que ninguém mais quer saber das verdadeiras causas dos fenômenos sociais, ou seja, ninguém mais se interessa pela tentativa – necessária, mesmo quando vã – de encontrar a verdade. Afirmou também que será difícil sair desta situação porque as fake news rendem ideológica, monetária e politicamente.
Mia Couto entendeu tudo, pegou a essência. As fake news não são um fenômeno exterior que ameaça o debate de nossa sociedade, não são uma doença maligna que orbita em torno de nosso corpo social. Na verdade, são o mais nítido sintoma de adoecimento do debate. Não ameaçam a saúde da sociedade moderna porque a sociedade não está saudável, e isso não se deve às fake news. Elas são resultado desse processo, não sua causa.
Se isso for compreendido adequadamente, teremos necessariamente que repensar as estratégias de como lidamos com as fake news. Não há como acreditar que a solução é combatê-las com a força bruta. O combate será um engano – naturalmente muito lucrativo a alguns –, se ignorado que o próprio debate que pretendemos salvar das fake news precisa ser repensado e reconstruído.
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O fato de o pensamento ter deixado de ser crítico e produtivo para se tornar mera mercadoria barata é a nossa real ameaça. Não é à toa que o jornalismo tem sido tão atacado e passa por uma crise sem precedentes. Muito do que é produzido é precário e ruim, muito do que é bom não é consumido. Tornou-se economicamente vantajoso produzir e reproduzir tolices. Ninguém mais quer saber de nada com algum mínimo grau de profundidade.
Lidar com as fake news não é um combate do bem contra o mal, mas, antes de tudo, perceber que somos nós os agentes da ameaça e também da cura, desde que haja interação com o outro e interesse na construção de verdades coletivas que valem à pena mantermos para o futuro. Mia Couto tem toda razão sobre fake news. E quem se interessa pelo Direito tem mil e uma razões para ler Mia Couto.
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