Opinião: Muito além de Marielle
Basta responder com sinceridade a questão: se Marielle fosse branca, rica e moradora da zona sul, teria sido assassinada? Você e toda a torcida do Corinthians e do Flamengo juntas sabem a resposta.
Poderia seguir o texto apontando as mazelas da política carioca que junta bandido e polícia, traficante e político, autoridade e miliciano na mesma frase com a mesma naturalidade que a sociedade espera por brancos na sala e pretos na cozinha. Seria simples: em um estado em que quase todos os ex-governadores saíram do palácio para as prisões não faltam argumentos para comprovar a podridão que a tropa de elite apontou, mas não exterminou.
Todavia, quero ir além porque passou da hora de botar o dedo na ferida. Marielle era muito para a elite corrupta. Uma mulher negra, atrevida, afrontando a quadrilha que dividia lucros entre autoridades e bandidos, entre políticos e milicianos, corajosa, nunca se intimidou com os recados atravessados dos brasões da política, como um homem branco qualquer não se acovardou e seguiu em frente.
Mas a questão é mais profunda. A Casa-Grande que habita no subconsciente da elite brasileira ainda resiste ao pessoal da senzala sentada na mesma mesa. “Não sou racista, tenho até amigo negro” vem na mesma linha de cinismo.
Olhar torto para a “mulatinha” que paquera o filho, crítica velada ao negão que malha no aparelho ao lado da academia. Preocupação com o “cara de cor” que vem em direção oposta na rua escura. A medíocre oposição às cotas raciais do branquelo na porta do cursinho com mensalidade de três salários-mínimos são apenas facetas de uma sociedade que ainda vive resquícios da mentalidade colonial, com a ideia da raça superior que desconfia até da capacidade intelectual equivalente da “turma do andar de baixo”.
O melhor emprego é sempre do branco assim como as promoções, sobrando o salário trinta por cento menor imaginando que o padrão de vida deles é mais barato?
Marielle era de esquerda, quase radical, comunista com toda a certeza, mãe sem marido, oriunda da favela… muitos “pecados” para uma só alma… ouvi de tudo e talvez você também seja testemunha. Mereceu morrer. Se meteu onde não devia. Comunista é tudo bandido. E a mais sublime: por que uma mulher quer se meter em assuntos da polícia?
Escrevo porque sei que muitos assinariam este texto comigo, também revoltados com o cinismo de uma sociedade que banaliza a discriminação, que faz vistas grossas ao racismo, que acha natural que a mulher esteja sempre em situação inferior e que tem certeza de que os negros precisam ser mantidos na periferia social, mesmo aqueles que tem “alma branca”.
Os resquícios arianos no DNA do brasileiro elitizado não admitem o preto de sucesso, o negão dirigindo o carrão importado, a “moreninha” protagonizando a novela principal, muito menos uma vereadora combativa que exigia correções de rumo.
Marielle não morreu apenas pelas ordens de brasão ou as quatro balas de Lessa, foi principalmente vítima de um racismo estrutural que sobrevive mesmo depois de mais cento e trinta anos de liberdade, ainda a espera da igualdade que não estava em nenhum artigo da Lei Áurea.
A parcela da sociedade que torce o nariz para a investigação do assassinato da vereadora se esconde na oposição ideológica, menos afrontosa que o racismo que a enxerga como uma invasora do “espaço branco”.
Encerro, repetindo as palavras de Marielle, quarenta minutos antes de morrer: “por 10 anos foi Benedita, por 10 anos foi Jurema, não dá para achar que ficarei aqui sozinha por 10 anos”. Poderia também ter repetido Maria Carolina de Jesus, uma outra mulher preta favelada, que há cento e quatro anos atrás dizia que o lugar das mulheres negras na sociedade era o quarto de despejo.
Ironia ainda maior, a pena dos assassinos soma 138 anos, que recuados na escala do tempo, nos remeteriam quase na data exata da Abolição da escravatura no Brasil.
Coincidência ou mais um recado para a parcela hipócrita da sociedade brasileira que esconde o racismo debaixo do tapete da área de serviço?
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