Opinião: “O governo que gosta de apanhar”

Qualquer observador, razoavelmente atento, já percebeu que a sociedade brasileira se inclinou à direita e, se isto não é evidente no debate político, na pauta de costumes é inquestionável.

Como que acometido da síndrome da mulher de malandro, o partido parece que gosta de apanhar e insiste em temas desta área. Resultado: segue apanhando e se desgastando com a sociedade.

Mesmo nas questões intrínsecas do debate, o PT não consegue se impor e a narrativa da direita se sobrepõe na opinião das pessoas. Vejam o caso do debate sobre o aborto, requentado esta semana, a direita vende a ideia de que a esquerda defende o aborto em qualquer circunstância e isto obstrui a possibilidade de um debate razoável sobre a possibilidade e os limites do aborto em caso de estupro.

São vários itens que precisam ser discutidos com razoabilidade e não submetidos ao rancor da polaridade política. Será justo que uma vítima de estupro tenha que criar um filho do criminoso? Será que vinte duas semanas não é um tempo satisfatório para que o aborto, nesta situação específica, seja permitido na legislação?

Quando se analisa o debate sobre a liberação da maconha, também se observa a mesma intransigência. Há uma distância quilométrica entre o uso recreativo e o uso farmacológico da Canabis e, destas duas situações, para o comércio criminoso de drogas. Mas o racional definitivamente foi desviado para segundo plano e as posições são determinadas pela régua ideológica, como se todos os cidadãos estivessem robotizados e condicionados a pensarem como suas matrizes.

Mesmo na questão da privatização das praias, pauta da direita, na contramão da vontade coletiva, o governo não consegue capitalizar porque perdeu a disputa pela opinião pública.

Em décadas passadas, bastava uma boa divulgação de um hit… vamos invadir sua praia… para arquivar o projeto por ostensiva rejeição popular, mas, mesmo quando está alinhado com a opinião pública, a esquerda segue sem capitalizar simpatia porque se associou, e insiste nisto, à contramão no debate da pauta de costumes que consegue inibir até os méritos de uma política econômica que administra a inflação abaixo do teto, reduz juros e coloca o desemprego no patamar mínimo em décadas.

Uma completa revisão dos parâmetros de comunicação do governo se faz urgente, porque a despeito de um bom volume de verbas, os números de aprovação do governo seguem em curva descendente, ainda que com ângulo suave, reduzindo a capacidade da esquerda de impor pautas ou até mesmo de vender bem seus méritos nesta gestão que, a despeito das inevitáveis falhas.

Sem uma análise mais depurada, se observa que a opinião pública bebe na fonte digital e o governo persiste investindo no analógico. A verba de veículos gráficos é ainda desproporcional ao impacto atual desta mídia. Alguém precisa avisar o governo que a população se informa no digital e mesmo nos veículos eletrônicos, a realidade se alterou profundamente nos últimos cinco anos e ninguém avisou Brasília.

Todavia, a questão mais grave, sem medo de tocar na ferida, é a identificação do partido com corrupção, cuja associação é inconteste para quase metade da população. Sem entender isto, o governo vai continuar patinando e vendo a turma da direita de cacifar para 2026.

Acho fundamental que o governo vista a sandália da humildade e perceba que o vento não sopra a favor, talvez buscar na nossa história recente exemplos de atitudes que geram respeito da população, como fez o presidente Itamar Franco quando afastou seu melhor amigo e ministro mais forte, Henrique Hargreaves, sob suspeita de envolvimento de favorecimento em negociação do governo.

Sob a régua do atual governo, Itamar crucificou seu ministro com açodamento, já que o atual ministro Juscelino, indiciado por corrupção, segue no governo porque não foi condenado ainda, segundo palavras textuais do presidente Lula, desconhecendo o mínimo de respeito pela opinião pública que ainda não absorveu sua descondenação.

Na Roma antiga, o próprio Julio Cesar, declarou que “a mulher de Cesar não basta ser honesta, precisa parecer honesta” … tem algum livro de história no Palácio Alvorada?

Entendo que o governo é refém do Congresso, não devia, mas é, e o cálculo político não concede folga para ações afirmativas e, para vergonha nacional, assim como nos governos anteriores, mesmo se o ministro for pego com dinheiro na cueca, ainda será necessário pedir autorização de seu partido para demiti-lo.

O governo ainda não se deu conta que tem pouco tempo para iniciar a reversão das expectativas, antes que elas se consolidem, porque se continuar preferindo apanhar, insistindo em pautas e posturas condenadas pela opinião pública, terá que estender o tapete vermelho para a direita voltar ao Planalto.

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