Opinião: “Quem fará o judiciário se acalmar?”

Em maio de 2020, escrevi para o jornal O Estado de São Paulo um artigo chamado “A Liberdade de expressão como mínimo democrático”. À época, vejam só que coincidência, eu comentava uma decisão que punia com remoção a postagem do então ministro da Defesa a respeito de Alexandre de Moraes. De lá para cá, muita coisa aconteceu, mas pouco mudou; ao contrário, a respeito do tema, só piorou. Se sairmos às ruas perguntando, talvez, haja mais gente que nunca se infectou com Covid do que gente que nunca teve perfis e contas bloqueados em redes sociais. Durante as eleições, difícil pensar em um veículo jornalístico que não tenha sofrido alguma restrição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Até mesmo a fala do ex-ministro Marco Aurélio sobre Lula não ter sido absolvido foi censurada.

A promessa dos ministros do TSE de que, após o pleito eleitoral, haveria calmaria nas decisões judiciais foi um engodo. O recente pedido de Moraes a Lula, para que apoie projetos agressivos às mídias, e o recente bloqueio das contas do economista Marcos Cintra, após manifestações que lançavam dúvidas sobre as urnas eletrônicas, são prova disso. Os tribunais superiores chamaram para si a tarefa de combater as fake news sem entender o que elas são. Fake news não são notícia falsa, mas conteúdos fraudulentos, ou seja, o combate do Judiciário tem de ser contra a fraude, não contra a falsidade. Verdade e mentira são conceitos fluidos e transitórios que, se expostos ao escrutínio de decisões atabalhoadas do Judiciário, resultarão invariavelmente em censura.

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Não é possível serem justificadas agressões judiciais às liberdades de expressão e de imprensa para supostamente preservar a democracia. Até porque, se a maior parte das constituições, inclusive a brasileira, considera a liberdade de expressão um direito implícito na natureza humana em sociedade, anterior, portanto, à própria democracia, não é viável que, em nome dela, a liberdade seja violada. O raciocínio, nesse ponto, parece o dos antigos cruzados, que matavam em nome da evangelização, sendo que a cristandade era tudo menos matar. Desde 2019, com o advento dos inquéritos sigilosos do STF, vivemos em contínuo alerta. Esperando a vinda de uma democracia utópica, colorida e florida feito um desenho animado dos Teletubbies, vamos vivendo, ano após ano, em um regime que não se assemelha à democracia, porque se tornou amedrontado e, sobretudo, covarde, punindo quem se expressa fora do script com a imensa e grotesca força estatal.

Ninguém é a favor das fake news, mas não vale, em nome da cruzada de alguns ministros do STF, perder-se a liberdade de expressão. Permitam-me, para finalizar, reproduzir um trecho de meu artigo ao Estadão, com a ressalva de que não sou eu que me repito, mas a história de um país arcaico como o nosso é que adora uma repetição.

“Somente por meio de valores constitucionais tão importantes como a liberdade de expressão, teremos um mínimo democrático: ofertando amor constitucional ao discurso até de quem odeia a democracia. De outro modo, seguiremos fantasiando que somos democráticos e justos, fingindo não perceber quão selvagem é um Estado que ameaçado ameaça, que combatido combate. Façamos do acolhimento ao discurso do outro, seja qual for o discurso, seja qual for o outro, o nosso mínimo democrático”.

André Marsiglia, advogado constitucionalista e membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – SP e da Comissão de Mídia e Entretenimento do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP)

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